Quando acaba o século XX

Ao ler “Quando acaba o século XX”, um ensaio esclarecedor da antropóloga e historiadora Lilia Moritz Schwarcz, temos uma perspectiva ainda mais clara sobre os impactos da pandemia de covid-19 em nossa sociedade brasileira. Olhando mais de perto fica evidente que, a partir da ruptura que vivemos a partir da pandemia, é como se o século XX tivesse, realmente, se encerrando só agora. Segundo a autora e o historiador Eric Hobsbawn (1917-2012), “os séculos não terminam com o virar da folhinha no calendário, mas quando grandes crises colocam em questão verdades já consolidadas”. De fato, Schwarcz esclarece que “Ao deixar mais evidente o nosso lado humano e vulnerável, a pandemia da covid-19 marca o final do século XX”.

Além da covid-19 em si, vale ainda destacar ainda que, nos últimos tempos, a consecutiva sucessão de desastres ambientais e climáticos de grandes proporções (e inéditas, por assim dizer), já nos alertavam para as prováveis consequências [ruins] que estariam por vir, já que nosso cuidado nada humano sobre a natureza tem inevitavelmente um preço, e caro.

De forma quase irônica, a autora diz que “se a humanidade aprendesse com o passado, os historiadores seriam visionários”. E não é por menos: A cada dia percebemos por meio de notícias que o cuidado com a vida humana por aqui está cada vez mais raro, a começar pelos governantes.

Schwarcz transparece “Pessimista no atacado e otimista no varejo”, ao defender que “se cada um exercer sua cidadania, sua vigilância cidadã, quem sabe damos sorte no azar”. Lembra ainda que o Brasil já se perdeu e já se encontrou várias vezes em sua história, “é hora de fazer da crise um propósito”.

Alguns outros trechos que merecem destaque:

“Por sinal, o Brasil consistentemente vai ganhando posições de proeminência nesse quesito. É o sexto país mais desigual do mundo. É o primeiro, junto com Catar, dentre os países democráticos. O Brasil não é um país pobre, mas é um país de pobres.”

“E nem sempre “casa” quer dizer “lar”. Casa sempre foi um local de repouso e abrigo. Já lar é um conceito criado pela burguesia, no século XIX, que tendeu a idealizar esse lugar, sublinhando o modelo de família estruturada e esquecendo dos conflitos por lá inerentes.”

“Somos capazes de “ver”, pois esse é um atributo biológico; no entanto, temos muita dificuldade de “enxergar”, uma vez que essa é uma escolha cultural e todos nós somos “míopes culturais” e sistematicamente fazemos da “branquitude” uma realidade sem pejas e receios.”

“Nossa prepotência é um pouco esta: achar que somos uma sociedade muito racional, que se pauta pela tecnologia, quando na verdade estamos sempre esperando por um milagre atrás do último.”

“Por sinal, nada mais denunciador do que o conceito de “novo normal”. A pergunta que não quer calar é: “novo normal” para quem? Para as elites que moram em seus “lares”, têm seus computadores individuais e quartos privativos ou para a imensa maioria da população brasileira que não tem acesso a essas benesses?”

“Uma doença só existe quando se concorda que ela existe. É preciso mostrar para a população que estamos doentes. Se não temos diretrizes claras por parte do governo, se nosso presidente insiste em dar contraexemplos e apoiar aglomerações, não há argumento que dê conta de se opor ao negacionismo de parte da população brasileira.”

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Lilia Moritz Schwarcz é professora titular no Departamento de Antropologia da USP e Global Scholar na Universidade de Princeton. É autora de, entre outros livros, O espetáculo das raças (1993), As barbas do imperador (1998, prêmio Jabuti de Livro do Ano), Brasil: Uma biografia (com Heloisa Murgel Starling, 2015) e Lima Barreto: Triste visionário (2017, prêmio Jabuti de Biografia).