O Livro das Ignorãças

Publicado em 1993, “O Livro das Ignorãças” de Manoel de Barros é uma obra peculiar. O autor constrói e desconstrói conceitos, brincando com o significado das palavras e dando a elas novos sentidos.

Um trecho da sinopse oficial destaca com exatidão a profundidade da obra:

O Livro das Ignorãças revela uma sofisticada e expressiva arte poética. Nele, a erudição se faz presente para poetizar a fala do que é marginal ou fronteiriço à civilização, a começar pela própria natureza e a população de pequenos animais do ar, das águas, de alagadiços e umidades. Manoel de Barros se faz aqui mestre de si mesmo. Em contraste com a “educação pela pedra” de João Cabral ou com a “pedra no meio do caminho” de Drummond, Manoel constrói um novo lugar para sua poesia ao propor uma deseducação pelo musgo, pelo caramujo, pelo sapo. Uma deseducação pela prática metódica de sensações e estímulos. Seu universo poético, como os riachos do Pantanal, ramifica-se ao infinito, mas é dotado de forte consistência semântica, estética e ética. Alcança a “não função” da palavra ao fazê-la “delirar”, “voar fora da asa”. No tipo de metáfora que resulta daí, a palavra A não representa uma imagem B. Temos A + B + C etc. preenchendo buracos de significação, em sucessivas operações sinestésicas. Pois a sabedoria da ignorãça é justamente inventar ou revelar latências de sentido.

Já no primeiro poema da primeira parte do livro, de nome Didática da Invenção, vemos o autor evidenciar a sua “sabedoria do esquecimento”:

I
Para apalpar as intimidades do mundo é preciso saber:
Que o esplendor da manhã não se abre com faca
O modo como as violetas preparam o dia para morrer
Por que é que as borboletas de tarjas vermelhas
têm devoção por túmulos
Se o homem que toca de tarde sua existência num
fagote, tem salvação
Que um rio que flui entre dois jacintos carrega
mais ternura que um rio que flui entre dois
lagartos
Como pegar na voz de um peixe
Qual o lado da noite que umedece primeiro.
etc
etc
etc
Desaprender oito horas por dia ensina os princípios.

No sétimo poema, ainda da primeira parte, encontramos uma reinvenção de um texto bíblico bastante conhecido e que está localizado no Evangelho segundo João 1-1: “No começo era o Verbo”:

VII
No descomeço era o verbo.
Só depois é que veio o delírio do verbo.
O delírio do verbo estava no começo, lá
onde a criança diz: Eu escuto a cor dos
passarinhos.
A criança não sabe que o verbo escutar não
funciona para cor, mas para som.
Então se a criança muda a função de um
verbo, ele delira.
E pois.
Em poesia que é voz de poeta, que é a voz de fazer nascimentos –
O verbo tem que pegar delírio.

Curiosamente, Manoel Barros descreve como só ele o modo para “entrar em estado de árvore”:

IX
Para entrar em estado de árvore é preciso
partir de um torpor animal de lagarto às
três horas da tarde, no mês de agosto.
Em dois anos a inércia e o mato vão crescer
em nossa boca.
Sofreremos alguma decomposição lírica até
o mato sair na voz.
Hoje eu desenho o cheiro das árvores.

Na segunda parte, no poema de número 12, Manoel de Barros retrata novamente o “estado de árvore”, desta vez colocando a si próprio nesta condição:

XII
Estou atravessando um período de árvore.
O chão tem gula de meu olho por motivo que meu
olho tem escórias de árvore.
O chão deseja meu olho vazado pra fazer parte do cisco
que se acumula debaixo das árvores.
O chão tem gula de meu olho por motivo que meu olho
possui um coisário de nadeiras.
O chão tem gula de meu olho pelo mesmo motivo que
ele tem gula por pregos por latas por folhas.
A gula do chão vai comer o meu olho.
No meu morrer tem uma dor de árvore.

Com poemas de leitura leve (mas nem por isso, rasos), com um jeito simples de expor suas ideias acerca das coisas e com uma lucidez sem igual, O Livro das Ignorãças é um livro cheio de encantos e neologismos, típicos de Manoel de Barros. Vale a pena a leitura.

Manoel de Barros nasceu no ano de 1916 em Cuiabá/MT. Em 1937 publicou seu primeiro livro de poesia, Poemas concebidos sem pecado. Viajou pela Europa, estudou cinema e arte em Nova York. Em 1958, mudou-se com a mulher Stella e os três filhos para o Pantanal. Recebeu diversos prêmios internacionais e suas obras foram traduzidas para vários idiomas. Faleceu aos 97 anos, no ano de 2014 em Campo Grande, MS.