“Estrela da Tarde” traz a arte de Manuel Bandeira expressa em versos com a linguagem direta do autor. Curioso como Bandeira tem a capacidade de exprimir coisas difíceis através das palavras mais singelas. O livro é um abraço do poeta que nos aproxima dos limites do que já não pode ser dito e que a luz das estrelas não nos deixa esquecer. A obra demarca o amadurecimento poético deste autor, período em que sua poesia se cristaliza e torna-se ampla de simplicidade, mas ao mesmo tempo rebuscada e sofisticada. Percebe-se que, ao ler a poesia de Manuel Bandeira temos contato com um homem sensível, mas ao mesmo tempo observador, consciente da dor de se existir e da experiência maravilhosa que é viver a vida. Com destreza extrema e uma grande competência técnica no uso das palavras e vocábulos, Manuel Bandeira nos mostra um dom de lidar com a musicalidade, a sensualidade, com a métrica e com o ritmo do poema de uma forma incomparável. Manuel Bandeira, em Estrela da Tarde faz experiências interessantes com a “Poesia Concreta”, uma nova vertente na época da edição da obra.
Destaco ainda que a edição que tive acesso foi a publicada pela Global Editora, 3ª edição de 1 janeiro de 2012.
A sinopse oficial apresenta a obra:
Estrela da tarde é livro da maturidade, obra crepuscular publicada em 1960, quando o poeta já superara a casa dos setenta anos, começava a meditar com mais profundidade na passagem desta vida para o outro lado do mistério e se mostrava convicto de ter cumprido bem a difícil missão de viver.
Mas, enquanto a “Indesejada das gentes” não vem, o poeta deixa -se absorver, ainda uma vez, por motivos permanentes de sua obra, a paixão pela música, compondo uma “Letra para Heitor dos Prazeres” musicar , o amor, a amizade fraternal que o leva a cantar amigos perdidos, Mário de Andrade e Jaime Ovalle.
O poeta também se arrisca em tentadoras experiências na mais radical corrente poética da época: o concretismo. Os poemas concretos do livro demonstram a lucidez e a curiosidade vivíssima do poeta.
Estrela da tarde, com sua preocupação pela morte, simbolicamente se contrapõe à plenitude de vida de Estrela da manhã, encerrando um ciclo de extraordinária força criadora, com o poeta purificado em espírito, esperançoso de uma vida mais alta: “Sou nada, e entanto agora/ Eis -me centro finito/ Do círculo infinito/ De mar e céus afora./ – Estou onde está Deus”.
E a seguir, alguns dos poemas para o deleite dos fãs de Manuel Bandeira:
Satélite
Fim de tarde.
No céu plúmbeo
A Lua baça
Paira
Muito cosmograficamente
Satélite.Desmetaforizada,
Desmitificada,
Despojada do velho segredo de melancolia,
Não é agora o golfão de cismas,
O astro dos loucos e dos enamorados.
Mas tão-somente
Satélite.Ah Lua deste fim de tarde,
Demissionária de atribuições românticas,
Sem show para as disponibilidades sentimentais!Fatigado de mais-valia,
Gosto de ti assim:
Coisa em si,
– Satélite.
Antologia
A vida
Com cada coisa em seu lugar.
Não vale a pena e a dor de ser vivida.
Os corpos se entendem mas as almas não.
A única coisa a fazer é tocar um tango argentino.Vou-me embora p’ra Pasárgada!
Aqui eu não sou feliz.Quero esquecer tudo:
– A dor de ser homem…
Este anseio infinito e vão
De possuir o que me possui.Quero descansar
Humildemente pensando na vida e nas mulheres que amei…
Na vida inteira que podia ter sido e que não foi.Quero descansar.
Morrer.
Morrer de corpo e alma.
Completamente.
(Todas as manhãs o aeroporto em frente me dá lições de partir.)Quando a indesejada das gentes chegar
Encontrará lavrado o campo, a casa limpa.
A mesa posta,
Com cada coisa em seu lugar.
Vita Nuova
De onde e veio esse tremor de ninho
A alvorecer na morta madrugada?
Era todo o meu ser… Não era nada,
Senão na pele a sombra de um carinho.Ah, bem velho carinho! Um desalinho
De dedos tontos no painel da escada…
Batia a minha cor multiplicada,
– Era o sangue de Deus mudado em vinho!Bandeiras tatalavam no alto mastro
Do meu desejo. No fervor da espera
Clareou à distância o súbito alabastro.E na memória, em nova primavera,
Revivesceu, candente como um astro,
A flor do sonho, o sonho da quimera.
A Ninfa
Estranha volta ao lar naquele dia!
Tornava o filho pródigo à paterna
Casa, e não via em nada a antiga e terna
Jubilação da instante cotovia.Antes, em tudo a igual monotonia,
Tanto mais flébil quanto mais eterna.
A ninfa estava ali. Que alvor de perna!
Mas, em compensação, como era fria!Ao vê-la assim, calou-se no passado
A voz que nunca ouviu sem que direito
Lhe fosse ao coração. Logo ao seu ladoBuliu na luz do lar, na luz do leito,
Como um brasão de timbre indecifrado,
O ruivo, raro isóscele perfeito.
Mal sem mudança
Da América infeliz porção mais doente,
Brasil, ao te deixar, entre a alvadia
Crepuscular espuma, eu não sabia
Dizer se ia contente ou descontente.Já não me entendo mais. Meu subconsciente
Me serve angústia em vez de fantasia,
Medos em vez de imagens. E em sombria
Pena se faz passado o meu presente.Ah, se me desse Deus a força antiga,
Quando eu sorria ao mal sem esperança
E mudava os soluços em cantiga!Bem não é que a alma pede e não alcança.
Mal sem motivo é o que ora me castiga,
E ainda que dor menor, mal sem mudança.
Manuel Bandeira nasceu em Recife, PE, em 1886. Em 1902, teve seu primeiro poema, um soneto em alexandrinos, publicado na primeira página do Correio da Manhã, no Rio de Janeiro. Entre 1903 e 1904, cursou Arquitetura na Escola Politécnica e Desenho de Ornato no Liceu de Artes e Ofícios de São Paulo, mas abandonou os cursos devido à tuberculose. Nos anos seguintes, passou longos períodos em estações climáticas do Brasil e da Europa. Na Suíça, onde esteve entre 1913 e 1914, tomou contato com a literatura de vanguarda francesa. De volta ao Brasil, em 1917, passa a viver no Rio de Janeiro, onde publicou seu primeiro livro: A cinza das Horas. Daí em diante, trabalhou intensamente como escritor, poeta, crítico literário e tradutor. Apoiou a Semana de Arte Moderna de 1922 e aproximou-se de vários modelos estéticos da literatura sem nunca aderir efetivamente a nenhum deles. Em 1940, é eleito membro da Academia Brasileira de Letras, e em 1942 membro da Sociedade Felipe d’Oliveira. Bandeira recebeu vários prêmios por sua obra, entre eles o prêmio da Sociedade Felipe d’Oliveira em 1937 pelo conjunto da obra e o prêmio de poesia do Instituto Brasileiro de Educação e Cultura em 1940, também pelo conjunto da obra. Sua posição na poesia brasileira é das mais importantes, sendo um dos pioneiros do Modernismo e o principal introdutor do movimento. Mário de Andrade o definiu como “o São João Batista do Modernismo”. O escritor faleceu em decorrência de uma parada cardíaca no Rio de Janeiro em 1968, aos 82 anos. Pela Global Editora publicou as seguintes obras: Melhores Poemas Manuel Bandeira, com seleção e prefácio de Francisco Assis Barbosa, Melhores Crônicas Manuel Bandeira, com seleção e prefácio de Eduardo Coelho, os infantis Na Rua do Sabão, Trem de Ferro, e as novas edições de Estrela da Manhã, Estrela da Tarde e Itinerário de Pasárgada.