Aí está um livro que é um soco na boca do estômago. Foi o que eu senti ao ler “O Brasil como Problema” de Darcy Ribeiro. Confesso que demorei a ter contato com as obras de Darcy Ribeiro e, no fim, quem saiu perdendo foi eu já que, de certo modo, estive alheio aos ensinamentos desse que, sabiamente soube colocar em poucas páginas o quem muitos não conseguem com inúmeros volumes e obras.
Indispensável para entender o Brasil, o autor interpreta o Brasil sob uma ótica sóbria e realista, sem rodeios e sem desculpas. A obra, apesar de abrir margem para muitos questionamentos, nos coloca numa posição de questionamento e inquietude, reações mais que necessárias, se levarmos em conta os rumos que nosso país tem tomado nos últimos tempos, com a atuação nebulosa de políticos e agentes públicos na dinâmica nacional.
A edição que tive contato faz parte da “Coleção Darcy no Bolso”, lançada pela UnB em 2010. Que lucidez! Me adianto em dizer que outros títulos do autor já foram devidamente incluídos na minha lista de próximas leituras.
A apresentação da obra já nos dá um vislumbre do que está por vir:
Qual é a causa real de nosso atraso e pobreza? Quem implantou esse sistema perverso e pervertido de gastar gente para produzir lucros e riquezas de uns poucos e pobreza de quase todos? Em O Brasil como problema, Darcy Ribeiro oferece um diagnóstico dos obstáculos cruciais que a nação brasileira precisa ultrapassar para se desenvolver de forma autônoma. Muitos atribuem o atraso e a pobreza do país a causas naturais e históricas, à religião católica, à colonização lusitana, à mestiçagem e até mesmo à juvenilidade do povo, mas Darcy defende aqui que são outros nós que precisam ser desatados para termos uma solução para o Brasil. Passando pela história da sociedade brasileira, pelo capitalismo e pela corrupção no âmbito político, Darcy Ribeiro ilumina questões necessárias para compreender a relação conflituosa entre a sociedade e os povos indígenas, a má distribuição de renda, a exploração dos trabalhadores e todas as consequências oriundas desses elementos tão presentes em nossa nação. Em O Brasil como problema, vemos como a maneira de Darcy interpretar o Brasil está intensamente fundada nas inúmeras leituras que realizou ao longo de seu percurso intelectual e, ao mesmo tempo, profundamente marcada por sua flagrante paixão pelos destinos de seu povo.
Na leitura de contra-capa mais sucinto (mas não menos claro), a descrição demonstra-se mais pessoal quanto ao autor e ao livre:
Darcy Ribeiro viveu movido por paixões. A primeira e a mais duradoura de todas foi a paixão pela vida. E a segunda, a paixão pelo Brasil. Jamais aceitou limitar-se à postura dos intelectuais que se isolaram nos claustros acadêmicos, vendo a vida de longe. Ele sonhou o Brasil como uma nova civilização, e foi à luta. Estes textos são um retrato nítido e palpavel dessa paixão desmesurada pelo nosso país. “Considero Darcy Ribeiro a inteligência do Terceiro Mundo mais autônoma de que tenho conhecimento. Nunca lhe senti nada da clássica subordinação mental do desenvolvimento.” – Anísio Teixeira.
Você que tem um pouco mais de interesse em saber de onde surgem os tantos problemas que afligem nossa nação, não perca a oportunidade de ler a obra. É uma porrada atrás da outra.
Certeiras e capazes de nos deixar imóveis e ao mesmo tempo indignados, o livro atinge em cheio nas diversas raízes dos problemas (estruturais, conjunturais e tantos outros) de nosso país.
Alguns trechos que separei e que merecem ser mencionados:
Nunca faltaram vozes de denúncia desse caráter cruel de nossa sociedade. Inclusive vozes de reconhecimento de que é à nossa elite que temos de debitar o desempenho medíocre do Brasil na civilização vigente. Cabe, agora, à nossa geração perguntar que culpa temos, enquanto classe dominante, no sacrifício e no sofrimento do povo brasileiro. Somos inocentes? Quem, letrado, não tem culpa neste país dos analfabetos? Quem, rico, está isento de responsabilidades neste país da miséria? Quem, saciado e farto, é inocente neste nosso país da fome? Somos todos culpados. Nossos maiores culpados, primeiro, somos nós próprios, depois, urdimos a teia inconsútil que é a rede em que nosso povo cresce constrangido e deformado. A característica mais nítida da sociedade brasileira é a desigualdade social que se expressa no altíssimo grau de irresponsabilidade social das elites e na distância que separa os ricos dos pobres, com imensa barreira de indiferença dos poderosos e de pavor dos oprimidos. Nada do que interessa vitalmente ao povo preocupa de fato à elite brasileira. A quantidade e a qualidade da alimentação popular não podia ser mais escassa, nem pior. A qualidade de nossas escolas, a que o povo tem acesso, é tão ruim, que elas produzem de fato mais analfabetos que alfabetizados. Os serviços de saúde de que a população dispõe são tão precários que epidemias e doenças já vencidas no passado voltam a grassar, como ocorre com a tuberculose, a lepra, a malária e inumeráveis outras. A solução brasileira para a moradia popular, na realidade das coisas, é a favela ou o mocambo. Não conseguimos multiplicar nem mesmo essas precaríssimas casinhas de marimbondo dos bancos da habitação e das caixas econômicas. Nossa elite, bem nutrida, olha e dorme tranquila. Não é com ela. Desafortunadamente, não é só a elite que revela essa indiferença fria ou disfarçada. Ela se espraia por toda a opinião pública, como uma hedionda herança comum de séculos de escravismo, enormemente agravada pela perpetuação da mesma postura ao longo de toda a República.
A triste verdade é que vivemos em estado de calamidade, indiferentes a ele porque a fome, o desemprego e a enfermidade não atingem os grupos privilegiados. O sequestro de um rapaz rico mobiliza mais os meios de comunicação e o Parlamento do que o assassinato de mil crianças, o saqueio da Amazônia ou o suicídio dos índios. E ninguém se escandaliza, nem sequer se comove com esses dramas. A imprensa só protesta mornamente e o faz quando ecoa o que se divulga lá fora. Parece haver-se rompido o próprio nervo ético da nossa imprensa, que nos deu, no passado, tantos jornalistas cheios de indignação em campanhas memoráveis de denúncia de toda sorte de iniquidade. Hoje, quem determina o que se divulga, e com que calor se divulga qualquer coisa, não são os jornalistas, é o caixa, é a gerência dos órgãos de comunicação. E esta só está atenta às razões do lucro.
A situação do Brasil é tão grave que só se pode caracterizar a política econômica vigente como genocida. Estão matando nosso povo. Estão minando, carunchando a vida de milhões de brasileiros. Desnutrida, desfibrada, nossa gente acabará se tornando mentalmente deficiente para compreender seu próprio drama e fisicamente incapacitada para o trabalho no esforço de superação do atraso. Vivemos um processo genocida. O digo com dor, mas com o senso de responsabilidade de um brasileiro sensível ao drama do nosso povo. O digo, também, como antropólogo habituado a examinar os dramas humanos. Vivemos, com efeito, um processo genocida que faz vítimas preferenciais entre as crianças, os velhos e as mulheres; entre os negros, os índios e os caboclos. Quantas crianças brasileiras morrem anualmente de fome, de inanição ou vitimadas por enfermidades baratas, facilmente curáveis? Estatísticas estrangeiras, cautelosas, falam de meio milhão. Estatísticas nacionais, menos cautas, contam mais de 800 mil. Quantas serão essas crianças que poderiam viver, e morreram? Cada uma delas nasceu de uma mulher, foi amada, acariciada numa família, deu lugar a sonhos e planos, nos dias, nas horas, nas semanas, nos meses, nos breves anos de sua vida parca. Seguindo a tradição, muita mãe chorou resignada, achando que melhor fora que Deus levasse sua cria do que a deixar aqui nesse vale de lágrimas.
Sou um homem de causas. Vivi sempre pregando e lutando, como um cruzado, pelas causas que me comovem. Elas são muitas, demais: a salvação dos índios, a escolarização das crianças, a reforma agrária, o socialismo em liberdade, a universidade necessária. Na verdade, somei mais fracassos que vitórias em minhas lutas, mas isso não importa. Horrível seria ter ficado ao lado dos que nos venceram nessas batalhas. Tudo que diz respeito ao humano, suas vidas, suas criações, me importa supremamente. Dentro do humano, o povo brasileiro, seu destino, é o que mais me mobiliza. Nele, a ínvia indianidade brasileira, que consegue milagrosamente sobreviver. Mas, sobretudo, a massa de gente nossa, ainda em fusão, esforçando-se para florescer numa nova civilização tropical, mestiça e alegre.
Vivemos, nós brasileiros, uma conjuntura trágica. O próprio destino nacional está em causa e é objeto de preocupação da cidadania mais lúcida e responsável. O aspecto mais grave e inquietante da crise que atravessamos é de natureza política. Frente a ela, as diretrizes econômicas, postas em prática por sucessivos governos, se caracterizam por uma incrível teimosia na manutenção de uma institucionalidade fundiária que condena o povo ao desemprego e à fome, pela mais crua insensibilidade social, por um servilismo vexatório diante de interesses alheios e pela mais irresponsável predisposição a alienar as principais peças constitutivas do patrimônio nacional. Outra característica é sua animosidade frente ao Estado, visto como a fonte de todos os males. Será assim? Onde, neste mundo, uma economia nacional floresceu sem um Estado que a conduzisse a metas prescritas? Onde estão esses empreendedores privados cuja sanha de lucrar promoveria o progresso nacional? Crerão esses fanáticos do neoliberalismo que o estado gerencial das multinacionais – que são entre nós o setor predominante das classes empresariais – se comove pelo destino nacional?
Darcy Ribeiro nasceu em Montes Claros em 26 de outubro de 1922. Autor de dezenas de obras, Darcy Ribeiro foi antropólogo, historiador, sociólogo e escritor, além de ter atuado na política brasileiro, sendo filiado ao Partido Democrático Trabalhista (PDT). Foi e ainda é conhecido por seu foco em relação aos indígenas e à educação no país. Ao lado do amigo a quem admirava Anísio Teixeira, ele foi um dos responsáveis pela criação da UnB, tendo ainda sido seu primeiro reitor. Redigiu o projeto, como funcionário do Serviço de Proteção ao Índio, do Parque Indígena do Xingu, criado em 1961. Foi ainda o idealizador da Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF). Faleceu em Brasília em 17 de fevereiro de 1997.