Com o objetivo de discutir a chamada “Filosofia dos afetos” Clóvis de Barros Filho e Luiz Felipe Pondé se reúnem para colocar suas impressões a respeito desta temática em “O Que Move as Paixões”. Lançado em 2018 pela Papirus Editora, o livro traz um bate papo entre os dois autores em tons irreverentes, leves e repletos de exemplos.
Nas poucas páginas, os dois autores discorrem sobre o que, de fato, movem as paixões humanas. Conduzido através da completude, sem interesse em disputas ou com cada um defendendo o seu ponto de vista, o papo acaba por apontar em uma direção comum, uma vez que tanto o amor quanto as paixões, volta e meia estão nos centro das atenções. Nesse encontro, Espinoza, Nietzsche e Freud serão algumas das referências encontradas.
É um livro curto, mas de leitura bem proveitosa. E, como era de se esperar, a leitura da obra flui facilmente, passando de maneira divertida e agradável por assuntos conhecidos por serem densos, complexos e sem uma pronta resposta.
A sinopse oficial destaca:
Nossa vida é movida por afetos. Entre eles, talvez, o que mais gere inquietações seja o amor. Neste estimulante encontro de ideias, Clóvis de Barros Filho e Luiz Felipe Pondé mostram como, de Platão a teóricos contemporâneos, a filosofia tem tentado explicar as paixões e lidar com elas. Afinal, como definir o amor? O que de fato amamos quando amamos? Seriam os afetos uma ameaça à razão, a ponto de serem temidos e até negados? Hoje, numa sociedade marcada pela desconfiança, e muito disposta em julgar – e condenar – o comportamento do outro, não é por acaso que muitas vezes escondemos nossos afetos. Nesse contexto, quais seriam os limites das paixões? Apenas o amor seria suficiente para garantir uma sociedade moralmente mais justa? Essas são algumas provocações que os autores trazem para debate nesse livro.
Pondé destaca que
A modernidade é uma época que tem por objetivo controlar tudo. E o afeto, por definição, é aquilo que não é controlável. A minha hipótese – que, claro, não é uma hipótese científica, pois não posso comprová-la, e sobre a qual conversaremos ao longo do livro – é de que, talvez, não exista nenhuma outra época histórica que tenha como objetivo a eliminação completa dos afetos. Minha impressão é que o mundo contemporâneo tem como projeto, entre outros, um lugar onde não exista amor nenhum. Não porque todo mundo se odeie, não esse papo anticristão, mas porque ninguém sinta mais nada. Eu vejo em temas como o poliamor, por exemplo, um desses sintomas. Pois amor é afeto, e afeto é sofrimento, perda de controle; afeto é alegre, é triste – como dizia Espinosa, “uma paixão alegre e triste”. O afeto é ali onde não se consegue decidir por si só, onde não se consegue ter controle absoluto da situação. Então, se passarmos do exemplo da manteiga para o afeto, ele é mais problemático ainda. Porque se não amarmos uma pessoa do jeito que ela quer, o mundo acabou.
Clóvis, por outro lado ressalta que
Quando nos relacionamos com uma pessoa e, supostamente, a amamos, é muito comum que ela nos cobre declarações de amor. E se dissermos: “Veja, eu me lembro de, no começo do ano, ter dito a você que a amo. E isso, para mim, basta”, é evidente que não basta. Tanto que existe uma cobrança por novas declarações. Declarações diárias. E se elas passarem a ser diárias, talvez tenham de ser horárias… Porque existe certa intuição de que aquela declaração tenha se tornado caduca, ou seja, de que o tal do afeto já não exista mais. Imagino que, sendo assim, de fato há uma preocupação com tudo que é afetivo, porque ele está inscrito naquela parte da vida que realmente escapa ao nosso controle. Epicteto diz que a vida é dividida em dois tipos de situação: aquela em que planejamos, projetamos, vivemos a princípio na mente, sobre a qual nós temos o controle etc.; e aquela que é relevante para a felicidade, que é vivida do mesmo jeito, mas escapa ao nosso controle. E a questão afetiva, obviamente, está inserida nesse segundo tipo, em que pouco ou nada podemos fazer com o que vai acontecendo conosco.
Pondé destaca a relação dos afetos, paixões e pecado dentro da filosofia cristã:
Na filosofia cristã, o terreno dos afetos e das paixões fica dentro do pecado. A única ideia que escapa é a do amor cristão, da caritas, do ágape, que é uma espécie de aniquilamento do eu, como superação de sentimentos ruins, do pecado – concupiscência, como se falava em latim. É aquela discussão, bastante influenciada por Aristóteles, de que o pecado faz com que a vontade se descole do intelecto, portanto ela fica desordenada, desorganizada. Esse olhar negativo, ainda que numa chave meio cristã, mostra a filosofia com medo do pathos. E a minha tese, na verdade, é de que temos medo dos afetos até hoje, e não sem razão. Com Espinosa, como filósofo moderno que é, começamos a descolar dessa filosofia negativa da natureza humana, e surge aquilo que os franceses, nos séculos XV e XVI, chamam de perfectibilité de l’homme – a ideia de que o homem pode ser aperfeiçoável, o que exige uma visão mais positiva, de alguma forma, dele. Nisso, me chama a atenção o fato de que Espinosa, como filósofo que é filho desse processo de um olhar mais moderno, de uma crítica às dimensões sombrias, tende para um otimismo um pouco ingênuo – “Cuidado! Religião não é teologia; é antropologia política. É uma invenção de uma elite judaica”, como podemos ver na discussão que ele faz no Tratado teológico-político.
Quanto a fidelidade, Clóvis afirma que esta é a matéria-prima da confiança :
A fidelidade é, portanto, a matéria-prima da confiança. Isso se, com Tomás de Aquino, entendermos a confiança como uma espécie de certeza a respeito do que não podemos verificar, pois não sabemos como o outro vai agir amanhã. Por exemplo, se contratamos alguém hoje para trabalhar amanhã, precisamos ter confiança porque não é possível verificar o que ele vai fazer no dia seguinte. Ou se contratamos uma pessoa para trabalhar num lugar onde não estamos. Todo lugar fora da nossa capacidade de verificação e de demonstração exige de nós confiança. Ora, qual é a matéria-prima dessa confiança a respeito do comportamento do outro senão algum tipo de fidelidade e de respeito a si mesmo, algum tipo de respeito a princípios éticos, valores ou o que quer que autorize antecipar algum tipo de comportamento vindouro? Isso é o que torna as relações mais ou menos possíveis.
O Instituto CTPL disponibilizou um bate papo entre os dois autores em seu canal no Youtube e que pode ser acessado aqui.
Clóvis de Barros Filho é graduado em Direito e Filosofia pela USP e em Jornalismo pela Cásper Líbero, com mestrado em Science Politique pela Universidade Paris III – Sorbonne-Nouvelle e doutorado em Ciências da Comunicação pela USP. Obteve a livre-docência pela Escola de Comunicações e Artes da USP, onde foi professor. Palestrante há mais de dez anos no mundo corporativo e consultor pelo Espaço Ética, é autor de vários livros sobre filosofia moral.
Luiz Felipe Pondé é doutor em Filosofia pela USP e pela Universidade Paris VIII. Possui pós-doutorado pelas Universidades de Tel Aviv (Israel) e Giessen (Alemanha). Coordenador de curso e vice-diretor da Faculdade de Comunicação e Marketing da Faap, leciona na pós-graduação em Ciências da Religião da PUC-SP. Foi professor convidado da Universidade de Marburg (Alemanha), da Universidade de Sevilha (Espanha) e da Escola Paulista de Medicina da Unifesp. É membro da Société Internationale pour l’Étude de la Philosophie Médiévale (Louvain, Bélgica) e assina coluna no jornal Folha de S.Paulo.