Eis que percorrendo meus livros para ler, me deparo com a obra “Para uma filosofia do inferno na educação – Nietzsche, Deleuze e outros malditos afins”, de Sandra Mara Corazza. Curioso, não?! Taí uma obra que, a princípio, causa estranheza (até mesmo pelo seu título), mas que, apesar disso, traz reflexões bem interessantes. Estão apresentadas inúmeras alegorias, exemplificações, além das várias referências a pensadores e filósofos de saber incomensurável.
Lançada em 2002 pela Autêntica, a obra que mistura religião, ficção, paradoxos, filosofia, fantasia, simbologia, mitologia e tantas outras “ias”, por vezes beira ao confuso e, quando menos se espera, no encontramos colapsados, repletos de palavras e conceitos. Aí somos resgatados pela autora de volta à margem.
A sinopse oficial destaca:
Se o inferno atravessa o mundo da Educação, ele pode aterrorizar o seu pensamento. Este livro convida o pensamento educacional a pensar o inferno, torná-lo o seu ponto de alucinação, tomá-lo como uma arma de guerra capaz de atirar projéteis, em velocidade absoluta, contra as fortalezas da Bem-Aventurança Educacional, que protegem a Boa-Vontade do Educador, que ensina A Verdade, e capturam a idéia da Boa-Natureza do Pensamento, que possui O Verdadeiro. Ao realizar uma experimentação com o inferno, o livro busca formular novas indagações, valorar outros valores, conceber novos afetos, adensar diferentes emoções. Pode ser visto como uma fantasia, um sonho, um trabalho de imaginação ardente. A obra precisará ser lida como não contendo nada a compreender ou interpretar e tudo a estranhar.
No primeiro capítulo chamado “Um livro infernal”, a autora tenta esclarecer o objetivo do trabalho:
O livro Para uma filosofia do inferno na Educação… integra-se à crítica da subjetividade, tal como operada pelo pensamento pós-nietzscheano das filosofias da diferença. Do próprio Nietzsche, e também de Deleuze, Guattari, Foucault, Derrida, dentre outros pensadores malditos, rouba conceitos, atraiçoa-os e com eles inventa uma espécie de máquina abstrata infernal para discutir a crítica do sujeito da Educação, que é também a do mundo, da sociedade, da história. Com tal máquina, problematiza o sujeito essencialmente representativo, coerente, ativo, autônomo, consciente, racional, submetido ao Princípio da Identidade Universal, capaz de exorcizar toda forma de diferença. Critica a condição transcendental desse sujeito, buscando dissipar a sua identidade, erigida como fundamento da experiência, do conhecimento, da moral e das relações pedagógicas. Considera que essa identidade nada mais é do que uma ficção sobre a natureza humana, seja ela psicológica, humanista, fenomenológica, dialética, cristã. Ficção que se eleva ao estatuto de verdade, oferece-se como princípio causai e sentido onipresente, permitindo à Educação organizar a apropriação de todos os corpos educáveis. Além de exercer uma função mais prática, ao servir de ponte para que cada indivíduo educado persiga a inteligibilidade de seu corpoalma e valide a sua unidade de Sujeito-Verdadeiro.
Ao falar do “Inferno na Educação”, ela expõe:
O Inferno da Educação é o que vem de 3500 a.C, dos acádios e sumérios, babilônios e assírios, hebreus antes do exílio e gregos arcaicos, povos germânicos e altaicos, tibetanos e polinésios, manchús e tártaros, mongóis e turcos, xamânicos e yacutas, tunguros e yuraks da Sibéria central, da África negra e pré-colombianos da América? Infernos terrestres e laicizados, vinculados à condição social, lugar de esquecimento, silêncio e letargia para todos, sem julgamento moral transcendente, distinção entre bons e maus, castigos póstumos. Ou seria chora? A partir do interior aberto do sistema, da língua e da cultura da Educação, o Inferno-chóra poderia situar não só o espaçamento abstrato, o próprio lugar da exterioridade absoluta, mas também o lugar de bifurcação entre duas abordagens do pensamento da Educação: entre uma tradição religiosa, salvacionista, e outra científica, também salvacionista. O Inferno da Educação é o dos primeiros infernos temporais para condenados, como o egípcio, o persa, o hindu, o iraniano, o indiano, os infernos filosóficos greco-romanos da época clássica, criados pelas antigas religiões não baseadas em um texto revelado? Infernos, nos quais o bem e o mal referem-se à ordem social ligada à ordem cósmica, os castigos purificam as almas culpadas e restabelecem a justiça divina ultrajada na vida terrena.
Sobra até para a pedagogia:
Na Pedagogia, há um personagem infernal, diabólico, demoníaco que diz: — Eu sou bom, portanto você é mau. Quem é que pronuncia essa fórmula, o que quer com ela, e para quem é dita? O Infantil é quem a diz ao Adulto, personagem celestial, eleito, divino da Pedagogia. Mas, ali, na Pedagogia, também é pronunciado: – Você ê mau, portanto eu sou bom. Aqui, quem é que fala, o que quer ao dizer isso, e para quem é dito? Desta vez, é o Deus-Adulto quem fala ao Demônio-Infantil. Estamos, portanto, diante de duas fórmulas diferentes, ditas por diferentes personagens que, evidentemente, não podem estar dizendo a mesma coisa, já que o “bom” de uma é precisamente o “mau” da outra. O “bom”, “mau” e até o “portanto” possuem sentidos diversos.
Sandra Mara Corazza é licenciada em Filosofia. Doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Professora da Faculdade de Educação da UFRGS, no Departamento de Ensino e Currículo e no Programa de Pós-graduação em Educação. Trabalha com a filosofia da diferença. Orienta mestrado e doutorado. Pesquisa a infância contemporânea no CNPq.