Extremamente atual, o “Discurso sobre a Servidão Voluntária” (Discours de la servitude volontaire, no original) é um discurso de autoria do filósofo francês Étienne de La Boétie, originalmente escrito em 1549, quando ele tinha apenas 18 anos e publicado após sua morte em 1563. O texto do discurso foi elaborado após a derrota do povo francês contra o exército e fiscais do rei, tendo estabelecido um novo imposto sobre o sal. O discurso se apresenta como um hino à liberdade, com inúmeros questionamentos sobre as causas da dominação de muitos por poucos, bem como sua indignação quanto à opressão e as formas de como vencê-la. Étienne de La Boétie morreu jovem, aos 32 anos, deixando em testamento seus escritos a Michel de Montaigne que, mais tarde, destacou os méritos de La Boétie nos Ensaios e em várias cartas. O teor humanista e libertário de seus escritos deixa evidente seu viés ideológico e político, colocando-o entre os precursores das ideias anarquistas. Esta edição conta com prefácio de Leandro Karnal que nos apresenta a obra: “Bem-vindo à aventura fascinante de enfrentar o fantasma da liberdade. O livro diante de você dialoga com este sonho e é um marco no pensamento ocidental. Aproveite e reflita. Para Étienne, só existe uma prisão possível: aquela que você mesmo construiu e cuja porta, por estranho deleite, você fechou. Saiba sempre que toda servidão é voluntária. Sua liberdade é sua, e você pode entregá-la a qualquer um que desejar. Os tiranos agradecem”.
Étienne de La Boétie pergunta-se sobre a possibilidade de cidades inteiras submeterem-se à vontade de apenas um homem. De onde um só tira o poder para controlar todos? Isso só poderia acontecer mediante a uma espécie de servidão voluntária. Ele afirma ainda que são os próprios homens que se deixam dominar, pois caso quisessem sua liberdade de volta, bastariam apenas de se rebelar afim de consegui-la novamente. Étienne também afirma que é possível resistir à opressão, e ainda por cima sem recorrer à violência. A tirania se destrói sozinha quando os indivíduos se recusam a consentir com sua própria escravidão. Como a autoridade constrói seu poder principalmente com a obediência consentida dos oprimidos, uma estratégia de resistência sem violência é possível, desta forma se organizando coletivamente a recusa de obedecer ou colaborar.
O conceito de servidão voluntária em Étienne de La Boétie envolve a tirania e exploração dos seus subordinados. A obra analisa a relação de subordinação existente entre o soberano e seus súditos num governo tirânico. Segundo ele, há três espécies de tiranos: o primeiro acede ao poder por meio do voto, o segundo pelas armas e o terceiro pela sucessão. La Boétie esclarece que, com certa frequência, as pessoas se associam e permanecem sob o jugo do tirano em razão de uma suposta segurança que lhes são proporcionada, mas que, verdadeiramente, traduz-se em exploração. Étienne de La Boétie informa que o poder do tirano não advém exclusivamente de sua força física, mas sobretudo da magia que seu nome é capaz de cativar. Nesse sentido, o nome do tirano exerce uma certa magia acerca das representações e desvincula o medo do poder, o qual se constitui mais pelo afeto do que pela força existente de fato.
O autor usa de exemplos para defender suas ideias, como em “Só quem for surdo não ouve o que dizem os animais: viva a liberdade! Muitos deles morrem quando os apanham. Como o peixe que, fora da água, perde a vida, também outros animais se negam a viver sem a liberdade que lhes é natural”. Entretanto ele deixa claro que tudo está em nossas mãos: “Muitas vezes perdem a liberdade porque são levados ao engano, não são seduzidos por outrem mas sim enganados por si próprios”.
Apesar de parecer complexo, o autor expõe a maneira pela qual os súditos devem agir para destituir o tirano de seu poder ficcional: basta deixar de servi-lo. Ele acrescenta informando que o povo se decapita justamente quando delega decisões que deveriam ser tomadas por ele mesmo a apenas um homem, ou seja, à medida que cada súdito concede seu poder ao tirano, o próprio povo corta a sua garganta. La Boétie reforça a indignidade de o ser humano viver no estado de submissão, devendo retomar ao estado de liberdade política a partir da tomada de consciência da existência da opressão.