A filosofia explica Bolsonaro

Diante do que temos vivido em nosso país, ler “A filosofia explica Bolsonaro”, de Paulo Ghiraldelli Jr. lançado em 2019, é um exercício que todo bom brasileiro deveria fazer, independente do ‘lado’ (se é que existem lados). Trata-se de uma leitura fundamental para aqueles que desejam entender o Brasil atual após o fenômeno Bolsonaro se estabelecer em nossa nação. A condução da obra é bem fluída, com temas devidamente separados em seus curtos capítulos e que abordam diversos aspectos que merecem atenção relacionados ao bolsonarismo, sejam ligados à pessoas, organizações, ações do próprio governo (ou desgoverno), entre outros temas. A forma com que o autor narra cada tema é bem consistente e também de fácil compreensão, mesmo para leigos.

Por se tratar de uma obra com uma certa base filosófica, ela permite ao leitor uma visão conceitual, sem abrir mão do estilo provocativo do autor de expor não apenas a sua opinião, mas os fatos que, recorrentemente, vemos nos noticiários. Neste caso, em alguns momentos a obra pode até ser considerada polêmica, mas perfeitamente de acordo e em conformidade com a realidade que temos assistido diante dos nossos olhos, dia após dia.

Vale ressaltar que, mesmo contando com uma abordagem filosófica, como o próprio título do livro sugere, não é necessário um conhecimento prévio de campos da filosofia, já que todos os elementos que servem de base para a argumentação do autor são explicados ao longo do próprio texto.

Vale citar a apresentação e sinopse oficial que explica bem o teor da obra:

Entender – e explicar – Jair Bolsonaro não é tarefa simples. A interpretação do que faz e representa o atual presidente e seu governo passa longe dos modelos tradicionais de análise. Por isso A filosofia explica Bolsonaro, de Paulo Ghiraldelli Jr., chega como um livro fundamental: o olhar crítico, feroz e original do autor ajuda a observar o Brasil de Bolsonaro a partir da lógica do atual governo – uma lógica fora dos padrões a que estamos acostumados. Polêmico na forma e sem medo do confronto no conteúdo, o filósofo disseca, em capítulos ágeis e breves, os atos e, sobretudo, os personagens que protagonizam talvez a mais profunda ruptura com os padrões tradicionais a que assistimos na história política e cultural brasileira – dos três filhos de Bolsonaro (conhecidos como 01, 02 e 03) a Olavo de Carvalho, passando pelos ministros Sérgio Moro e Paulo Guedes, além de personagens como a deputada Joice Hasselmann e o chanceler Ernesto Araújo. Sem esquecer os temas que mais mobilizam a cabeça – e a raiva – do presidente e seus seguidores: a educação, o meio ambiente, a cultura e, claro, o ex-presidente Lula, a esquerda e o comunismo. Com clareza, humor e espírito combativo, Ghiraldelli apresenta um texto destinado a todos leitores dispostos a pensar.

Alguns trechos que merecem menção:

Vivemos hoje sob a mágica de Fortunatus. Todos nus, como Cabral nos encontrou, e com uma bolsa mágica, ou melhor, obrigatoriamente com um cartão de crédito. Mesmo que tenhamos a contenção como lema e não compremos nada essencial, tudo que compramos tem a libido alterada. É que o cartão se esfrega em alguma maquininha, em operação similar ao ato sexual. E como não usam preservativos, nasce dinheiro para nós e muito mais dinheiro na conta bancária da instituição que nos obrigou a ter o cartão e a maquininha. Isso se chama juros. A Igreja, no tempo de Cabral, chamava isso de pecado – o pecado da usura. Somos restos de índios endividados e nus, sequestrados pela nova vida – a do capitalismo financeirizado. Os brancos do navio, que não dão espelhinhos, são os bancos. Não podemos ir para o inferno por isso, pois somos índios e, então, não temos ideia de que participamos do pecado do banco, e do branco. Mas, enfim, não carecemos de punição do inferno, estamos nele.

Na teoria de Marx o valor é algo especial e fundamental. Ele emerge das relações sociais que se institucionalizaram com o mercado, mas com tal mercado diferente do que sempre existiu como simples escambo ou mesmo com algum regime monetário, vigente no passado pré-capitalista. Marx viu que as mercadorias trazem lucro por seu valor, e não simplesmente porque são compradas baratas e vendidas mais caras. Cada mercadoria tem valor porque ela traz em si o trabalho social médio, ou seja, a atividade laborativa humana em abstrato, no seu interior. Este é o segredo do mercado capitalista: ele põe nas mãos de compradores algo que pode ser usado, mas devolve às mãos de capitalistas mais valor do que aquele que foi necessário para a sua confecção, ou seja, capital envolvido nas maquinarias e capital para pagar a reposição da força de trabalho utilizada na produção das mercadorias. Só a partir dessa noção de valor, e do entendimento de que o processo de valorização é que é o objetivo do capital, que cresce em valor em uma tendência infinita, é que se pode considerar o capitalismo. O capitalismo não funciona pela ganância dos capitalistas, embora esta exista de fato.

Por mais que a cadeira da Presidência venha a exigir de Bolsonaro algum ato administrativo, ele vai fazer questão de fugir desse encargo. Bolsonaro é o presidente de leis de trânsito, salários de policiais, amor a caminhoneiros e bravatas anti-intelectualistas. Mas o que ele gosta mesmo de fazer é fustigar as esquerdas. Ou melhor: fustigar tudo aquilo que ele imagina que é de esquerda. Bolsonaro atua como criança pirracenta. Se algo lhe é apresentado como tendo algum vínculo com a esquerda, então ele fala contra. Bolsonaro vê na Constituição de 1988 não o que ela é, uma boa peça para a defesa do capitalismo e da sociedade de mercado, do liberalismo e dos direitos individuais inerentes ao modelo liberal. Ele a vê segundo os embates travados na época de sua confecção. Os preceitos liberais nela contidos foram defendidos por pessoas de esquerda – como é o comum em democracias ocidentais –, por isso mesmo toda a Constituição deve ser destruída. Bolsonaro acabou concordando com o neoliberalismo de Paulo Guedes exatamente por conta desse fato: é necessário extirpar o cheiro de social-democracia que pode emanar da Constituição de 1988. Tal cheiro foi que fez com que Ulysses Guimarães a tenha denominado “Constituição Cidadã”. Bolsonaro é contra a cidadania.

O “culturalismo” e a “ideologia de gênero” são, para a direita, não algo do campo acadêmico somente. Devem ser denunciados ao mundo como movimentos que arcam com ideias fabricadas pelo “comunismo”, pelo “esquerdismo”. Por que os “esquerdistas” estariam promovendo tal coisa? Simples: como no âmbito do que professava e denunciava o macartismo, os tais comunistas estariam tentando gerar a deterioração da família e dos valores ocidentais, para então dominarem nossa sociedade de uma vez por todas. Sem a resistência da família, “guardiã dos valores tradicionais e cristãos”, todos nós ficaríamos fragilizados diante da mudança de valores e costumes, que teriam sido “impostos pelo comunismo”. Um belo dia, de tanto mudar nossa linguagem, acordaríamos numa manhã já sem sol, todos adeptos de práticas homossexuais e correlatos, e já estaríamos então moralmente fracos, presas fáceis do jugo de chefes comunistas. Teríamos perdido a família e ganhado, em troca, com auxílio do demônio, a tirania. No regime comunista, então, tudo nos seria proibido, inclusive o sexo hétero! Fico sempre pensando nessa imagem que a direita faz do comunismo: um monte de operários, chefiados por Lênin, gritando contrariamente à la Tim Maia: “Homem com homem e mulher com mulher, uni-vos.”

A religião da direita bolsonarista, ou criptobolsonarista, é a cristã. Mas o Jesus que essa direita louva não é aquele encontrado no Novo Testamento. Parece-se mais com o Deus do Velho Testamento ou, talvez, mesmo, com o demônio. O lema desse Jesus nada tem a ver com o amor, mas endossa as atitudes de juiz do Deus do Velho Testamento. Todavia, seus julgamentos não possuem sabedoria e, por isso mesmo, tratase de um engodo de divindade. O Jesus dessa direita é um deus que condena tudo aquilo que o Jesus dos textos bíblicos abraçou: prostitutas e ladrões. A parábola do Bom Samaritano, então, nem pensar que é assunto entre esses cristãos – em grande parte evangélicos. Se uma tal parábola ensinou o acolhimento do estrangeiro, do diferente, o Jesus dessa direita ama só o que lhe é familiar e igual. É um Jesus tão homofóbico quanto os pastores que dele se utilizam. É um Jesus que adora a ostentação, e não os pobres. É um Jesus que diria que nada sabe de camelos e agulhas e que lugar de rico é mesmo no céu. Trata-se de um estranho Jesus, que quer que todos andem armados!

A direita adepta do bolsonarismo tende a enfrentar qualquer posição próxima de algo que cheire a feminismo usando da intimidação sexual e moral. “Você não merece ser estuprada”, diz Jair Bolsonaro. “Feminista não entende de mulher”, diz Luiz Felipe Pondé. No primeiro caso: a mulher estuprada seria premiada, se o estuprador fosse ele próprio, o garanhão Bolsonaro – assim ele pensa. No segundo caso: feminista não é mulher, e quem entende de mulher é o macho alfa, ele próprio, Pondé – assim ele imagina ou quer se imaginar. Nos dois casos, a mensagem é esta: temos um grande mastro no meio das pernas reservado para vocês, seres inferiores, mulheres. Parece ridículo, é ridículo. Mas essas pessoas pensam realmente assim. Ou, para afirmar uma masculinidade duvidosa, pretendem se passar por cafajestes. Optam pelo banditismo para parecerem homens!

O livro “A filosofia explica Bolsonaro”, de Paulo Ghiraldelli também foi tema de uma entrevista no Programa Bom para Todos, da Rede TVT e pode ser visualizada aqui.

Paulo Ghiraldelli Junior é filósofo e escritor. Doutor e mestre em Filosofia pela USP em Filosofia da Educação pela PUC-SP, obteve seu pós-doutorado pela UERJ na área de Medicina Social (Estudos sobre Corpo e Subjetividade) e sua livre-docência pela Unesp (História da Educação), onde também atuou como professor titular concursado (Filosofia da Educação). Trabalhou como pesquisador na Nova Zelândia e nos Estados Unidos. Bacharelou-se em Filosofia pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (SP) e licenciou-se em Educação Física pela Escola de Educação Física de São Carlos, incorporada pela UFSCar. Atualmente, dirige o Centro de Estudos em Filosofia Americana. Mantém um canal no YouTube e o site ghiraldelli.pro.br.