Genial, por assim dizer, Franz Kafka consegue colocar o leitor literalmente na pele do protagonista, que se vê preso a um corpo que não é seu. A narrativa consegue nos prender do início ao fim, ao mesmo tempo que ficamos ali, sem saber ao certo, o que virá em seguida. Curiosamente, já nas primeiras linhas de leitura me veio à mente um outro clássico – mas este, do cinema – da década de 1980, A Mosca de David Cronenberg que, por sua vez, é baseado em “The Fly” de George Langelaan. Claro, eu sei, uma coisa é uma coisa, e outra coisa é outra coisa. Mesmo assim, uma referência natural acabou por se fazer. Mas já tinha consciência que o que estava por vir, em nada se parecia com o asqueroso inseto transmutado de Cronenberg.
Pois bem, publicada pela primeira vez em 1915, “A Metamorfose” (Die Verwandlung, em alemão) traz uma narrativa breve e intensa, sendo caracterizada como um dos maiores clássicos da literatura universal. A obra busca aproximar o leitor comum em relação ao protagonista, ilustrando o absurdo da condição humana e dos modos como vivemos e nos organizamos. Apesar da alienação crescente e da desumanização que encontra entre os familiares, percebemos em algumas passagens que ele não está desesperado por ser um inseto gigante. As preocupações naquele instante são outras. Estas sim, são absurdas se comparadas situação vivida pelo personagem principal Gregor Samsa.
A sinopse oficial relata:
Ao acordar, certa manhã, de sonhos inquietos, Gregor Samsa se deu conta de que havia se metamorfoseado num gigantesco inseto. Estava deitado na cama, sobre as costas, que eram tão duras que pareciam uma armadura de metal e, ao levantar um pouco a cabeça, visualizou a barriga marrom e arredondada, dividida em arcos rígidos, sobre a qual a coberta não conseguia permanecer, estando a ponto de escorregar e cair a qualquer momento. Possuía inúmeras pernas, que eram desproporcionalmente finas em relação ao resto do corpo e elas se agitavam desesperadamente diante de seus olhos.
Em outra resenha encontrada na Internet destaca a obra como a obra mais importante do autor:
Escrita em 1912 e só publicada em 1915, A metamorfose é o mais famoso livro de Kafka, um dos mais importantes da leitura mundial e um dos poucos que ele publicou em vida. Nesta novela o protagonista Gregor Samsa, um caixeiro – viajante, acorda certo dia transformado em um monstruoso inseto, razão pela qual sua família que ele sustenta, aos poucos vai se esquivando dessa criatura abominável e nojenta. Fantástica, inverossímil e bem-humorada, esta narrativa opera o tempo todo com constantes tragicômicos e associa o cruel e o grotesco na condição humana, relembrando ao leitor que o horroroso é, ao mesmo tempo, cotidiano e familiar. Este texto é um dos principais componentes de uma obra que influenciou vários movimentos artísticos, como o surrealismo, e o existencialismo e o teatro de absurdo.
Em uma leitura de orelha, vimos:
De certo modo, não é preciso ter lido Kafka para conhece-lo — um pouco, pelo menos. O adjetivo kafkiano tornou-se para nós sinônimo de incompreensível, caracterizando em geral uma seqüência de fatos aparentemente banais e, ao mesmo tempo, perfeitamente refratários a qualquer tipo de explicação.
A primeira fase de A Metamorfose já nos lança em pleno universo kafkiano: “Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso”.
Gregor Samsa mora com a família: pai, mãe, irmã. Ao longo da narrativa, acompanhamos o estupor dos três, o esforço que fazem para descobrir qual é o comportamento adequado à situação; do outro lado, vemos uma consciência tragada por um corpo que lhe é estranho. Um corpo antinatural, a-histórico.
Mas o absurdo é narrado num tom preciso, frio, formal, como se o pesadelo integrasse naturalmente o cotidiano: a dor dos escritos de Kafka deve muito a essa técnica da indiferença.
Alguns trechos que merecem destaque:
Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso.
Reflexões calmas, inclusive as mais calmas, ainda são melhores do que as decisões desesperadas.
É bom quando nossa consciência sofre grandes ferimentos, pois isso a torna mais sensível a cada estímulo. Penso que devemos ler apenas livros que nos ferem, que nos afligem. Se o livro que estamos lendo não nos desperta como um soco no crânio, por que perder tempo lendo-o? Para que ele nos torne felizes, como você diz? Oh Deus, nós seríamos felizes do mesmo modo se esses livros não existissem. Livros que nos fazem felizes poderíamos escrever nós mesmos num piscar de olhos. Precisamos de livros que nos atinjam como a mais dolorosa desventura, que nos assolem profundamente – como a morte de alguém que amávamos mais do que a nós mesmos –, que nos façam sentir que fomos banidos para o ermo, para longe de qualquer presença humana – como um suicídio. Um livro deve ser um machado para o mar congelado que há dentro de nós.
Talvez não percebam o que se está a passar, mas eu percebo. Não pronunciarei o nome do meu irmão na presença desta criatura e, portanto, só digo isto: temos que ver-nos livres dela. Tentávamos cuidar desse bicho e suportá-lo até onde era humanamente possível, e acho que ninguém tem seja o que for a censurar-nos.
Ao escutar estas palavras de sua mãe, Gregor apercebeu-se de que a falta de qualquer diálogo humano direto, a par da monotonia da sua vida na família, tinham certamente perturbado o seu espírito no curso daqueles meses; de outro modo, como explicar que ele pudesse desejar ter o seu quarto vazio?
Franz Kafka é considerado um dos escritores mais importantes do século XX. Nasceu em Praga, Império Austro-Húngaro (República Tcheca) em 3 de julho de 1883 e faleceu em Klosterneuburg (Áustria) em 3 de junho de 1924. De família judaica, escreveu seus textos em alemão. Agressão física e psicológica, conflitos familiares, momentos aterrorizantes e labirintos burocráticos são características das obras de Kafka. Essas marcas deram origem ao termo kafkiano.