O coletivo comunista chinês Chuang pode ser classificado como um observador “privilegiado” do início dessa tragédia que ainda não está completamente definida, uma vez que está localizado em seu no epicentro. Este olhar está evidenciado no livro “Contágio Social: Coronavírus e a Luta de Classes Microbiológica na China”, lançado em 2020 e que nos apresenta uma análise lúcida, baseada em dados econômicos e sociais, além de lançar luz em estudos recentes sobre pandemias, trazendo uma visão acurada do capitalismo de hoje e no conhecimento em primeira mão das complexidades da China atual.
Esta obra traz o artigo publicado no dia 26 de fevereiro de 2020 no blog do coletivo comunista chinês Chuang que, em menos de um mês foi traduzido do original inglês para, além do português, o francês, alemão, espanhol e o russo. Assim, o coletivo se tornou um nome mais reconhecido no “Ocidente” conforme os links iam circulando de mensagem em mensagem, de tuite em tuite, promovendo debates sobre economia política, epidemiologia marxista e revolta autonomista.
Diante de tanta histeria promovida por diversos agentes ao redor do mundo, não é surpreendente que esse seu pequeno ensaio sobre o impacto do coronavírus tenha sido imediatamente traduzido para tantas línguas e seja tão debatido.
Duas citações dispostas já no início da obra apresentam um pouco do que está por vir:
“É nas crises do mercado mundial que se revelam as contradições e os antagonismos da produção burguesa. Em vez de investigar a natureza dos elementos conflituosos, se contentam em negar a catástrofe e insistir” – Karl Marx, Teorias da Mais-Valia, Parte 2.
“O que é natural é o micróbio. O resto — a saúde, a integridade, a pureza, se quiser — é um efeito da vontade, de uma vontade que não deve jamais se deter” – Albert Camus, A Peste.
A obra expõe com clareza, seu ponto de vista sobre a covid-19 e demais pragas:
Pragas são em larga medida uma sombra da industrialização capitalista, enquanto também agem como seu arauto. Os casos óbvios da varíola e outras pandemias introduzidas na América do Norte são um exemplo muito simples, uma vez que sua intensidade foi aprimorada pela separação de longo prazo das populações humanas por meio barreiras geográficas e essas doenças, independentemente, já haviam ganhado sua virulência via redes mercantis pré-capitalistas e a urbanização precoce na Ásia e na Europa. Se olharmos para a Inglaterra, onde o capitalismo surgiu primeiro no campo, através da expulsão em massa de camponeses da terra, que passou a ser dedicada às monoculturas de gado, vemos os primeiros exemplos dessas pragas distintamente capitalistas.
O tom crítico e focado segue esclarecendo:
Além de induzir periodicamente crises agrícolas e produzir as condições apocalípticas que ajudaram o capitalismo a ultrapassar suas fronteiras iniciais, essas pragas também assombraram o proletariado do próprio núcleo industrial. Antes de retornar aos muitos exemplos mais recentes, vale a pena notar uma vez mais que simplesmente não há nada exclusivamente chinês no surto de coronavírus. As explicações sobre por que tantas epidemias parecem surgir na China não são culturais, é uma questão de geografia econômica. Isso é bastante claro se compararmos a China com os EUA ou a Europa, quando estes eram polos de produção global e emprego industrial em massa.
O coletivo associa os surtos de Ebola com a covid-19 ao afirmar:
Na melhor das hipóteses, a doença é com frequência apresentada como se fosse algo como um desastre natural. Mas, pior, é também com frequência atribuída às práticas culturais “impuras” dos pobres que vivem na floresta. Mas o momento desses dois grandes surtos (2013-2016 na África Ocidental e 2018 até o presente na RDC) não é uma coincidência. Ambos ocorreram precisamente quando a expansão das indústrias primárias deslocou ainda mais os povos que habitam as florestas, perturbando os ecossistemas locais. De fato, isso parece ser verdade não só para os casos mais recentes, pois, como explica Wallace, “todo surto de Ebola parece conectado a mudanças no uso capitalista da terra, incluindo o primeiro surto em Nzara, Sudão, em 1976, onde uma fábrica financiada pelos britânicos começou a tecer algodão local”. Da mesma forma, os surtos de 2013 na Guiné ocorreram logo após um novo governo ter começado a abrir o país aos mercados globais e vender grandes extensões de terra a conglomerados internacionais do agronegócio. A indústria de óleo de palma, notória por seu papel no desmatamento e destruição ecológica em todo o mundo, parece ter sido particularmente culpada, pois suas monoculturas devastam as robustas redundâncias ecológicas que ajudam a interromper as cadeias de transmissão e ao mesmo tempo literalmente atraem as espécies de morcegos que servem como um reservatório natural para o vírus.
O livro traz inúmeras referências, links e acessos a detalhes além dos que estão na publicação. Em uma delas, o coletivo traz uma séria denúncia sobre a condução da crise na China ao informar:
Se procurássemos um único símbolo para expressar o caráter básico da resposta do Estado, seria algo como um vídeo filmado por um morador de Wuhan e compartilhado com a Internet ocidental via Twitter em Hong Kong. O vídeo mostra um grupo de pessoas que parecem ser médicos ou socorristas, com equipamentos de proteção completa, tirando uma foto com a bandeira chinesa. A pessoa que gravou o vídeo explica que o grupo costuma ir lá todos os dias para essas sessões fotográficas. O vídeo segue os homens enquanto tiram o equipamento de proteção e ficam conversando e fumando, até usando um dos jalecos para limpar o carro. Antes de partir, um dos homens despeja sem cerimônia o traje de proteção em uma lata de lixo próxima, sem se dar ao trabalho de enfiá-lo no fundo, onde não será visto.
Como pode ser visto, este é um livro essencial para entender o momento que vivemos. Assim na China como no Brasil.
O Coletivo Chuang surgiu em 2013, congregando livres pensadores, acadêmicos e exilados de outros coletivos igualmente anônimos. Declaradamente inspirados em coletivos ocidentais como Endnotes, Sic e Kosmoprolet, os Chuang se tornaram inicialmente mais conhecidos fora dos círculos “sinófilos” por marcar uma posição contrária tanto ao neoliberalismo ilhota quanto ao chauvinismo continental nas batalhas de Hong Kong em 2019, e também pelos seus luxuosos “Journals”, periódicos finamente publicados pela editora anarquista norte-americana AK Press.
O livro está disponível nos formatos e-book e PDF no site da Veneta, com download gratuito.