Ler Veríssimo é sempre uma boa pedida. Seu dia pode estar indo de mal a pior que, se você se deparar com uma de suas crônicas ou um texto seu qualquer, existe uma grande chance de fazê-lo abrir um sorriso, mesmo naquele momento de desespero. Não é por causa do humor apelativo ou piadas. Não! É a forma como ele conta as histórias, a forma como tudo se desenrola, como que, de maneira simples, ele consegue passar a mensagem.
A edição que li de “Diálogos Impossíveis” de Luis Fernando Verissimo foi publicada pela Editora Objetiva de 2012.
A obra apresenta 45 textos escolhidos cuidadosamente, originalmente publicados entre 1999 e 2011, nos jornais “Zero Hora” e o “Estado de São Paulo”. Com a perspicácia encontrada em tantas outras criações do autor, os textos reunidos aqui trazem algo em comum: a dificuldade de comunicação e seus consequentes mal-entendidos e, de uma forma muito bem humorada e por vezes metafórica, funcionam como uma crítica ao absurdo que marca a existência humana, absurdos esses encontrados no cotidiano, nas relações sociais e na vida.
A sinopse oficial destaca:
Qual um existencialista dotado de senso de humor, Luis Fernando Verissimo persegue em suas crônicas o absurdo que marca a existência humana. Nos textos reunidos em “Diálogos impossíveis”, ganhador do Prêmio Jabuti 2013 de Melhor Livro do Ano de Ficção, o autor escreve sobre impossibilidade, incomunicabilidade e mal-entendidos.
Imagina como seria Don Juan tentando seduzir a própria Morte ou a conversa cotidiana de um casal que se desentende na hora de dormir. O homem – e, sejamos igualitários, a mulher – parece falar o que não deve e calar no fundamental. Para sorte do leitor, Verissimo está sempre por perto, registrando os hilariantes momentos em que o ser humano exerce sua vocação para a confusão.
Verissimo cria situações surreais, como o incorruptível Robespierre tentando subornar o carrasco; Goya e Picasso conversando sob o sol da Côte d’Azur. Há ainda o relato de Juvenal que planeja matar a mulher, Marinei, que o despreza, e da recém-casada Heleninha cujo urso de pelúcia é seu maior conselheiro. Nas crônicas reunidas no livro, o autor escreve enfim, sobre a vida.
Em uma citações que localizei na Internet sobre a obra, destaco esta que resume bem o que o leitor encontrará nas páginas de “Diálogos Impossíveis”:
Nas crônicas reunidas neste volume, Luis Fernando Verissimo escreve sobre impossibilidade, incomunicabilidade e mal-entendidos – ou seja, escreve sobre a vida.
A seguir reproduzo três dos textos encontrados na obra. Mas acredite quando digo que vale a pena ler todos, na sequência, se possível.
Revelações
A posteridade não é mais um lugar seguro. Com a nova liberalidade, principalmente em matéria de sexo, as biografias agora contam tudo. Biografia sem uma revelação antes desconhecida ou suprimida não tem graça, ou não é biografia. Até as autobiografias precisam incluir confissões reveladoras, para serem confiáveis.
Existe um livro que diz explicitamente o que todos já desconfiavam: que J. Edgar Hoover, eterno diretor do FBI, defensor da lei, da ordem e dos bons costumes, caçador de comunistas e um notório durão, ia a festas vestindo um tutu rodado. John Kennedy, sabe-se agora, jamais perguntava a americanas o que seu país poderia fazer por elas, mas o que elas poderiam fazer pelo seu país ali mesmo, em cima da mesa do Gabinete Oval. Durante os anos Kennedy a maior ameaça à segurança dos Estados Unidos era alguma moça disparar foguetes nucleares contra a União Soviética com sua bunda, sem querer. (E quando os mísseis soviéticos começassem a cair sobre Washington em retaliação, se ouviria da Casa Branca a voz de Kennedy gritando “My God, isto é o que eu chamo de orgasmo!”.)
Em breve saberemos que Cristóvão Colombo desembarcou no Novo Mundo de mãos dadas com um marinheiro. Que Átila, o Flagelo de Deus, era secretamente chamado pelos seus comandados de Rainha dos Hunos e vivia maritalmente com seu cavalo. Que mesmo durante a guerra Winston Churchill continuou reunindo-se todas as quintas com ex-colegas de escola para relembrarem as festas no dormitório, inclusive com as ligas pretas. E que certa vez Charles de Gaulle foi convidado para a reunião, chocou-se com o que viu, mas no meio da noite já estava só de combinação.
Alguns detalhes históricos serão esclarecidos. Napoleão enfiava a mão dentro da túnica seguidamente para ajeitar o soutien. Stalin tinha um bigode cor-de-rosa para usar em ocasiões especiais. Monsieur e Madame Curie eram a mesma pessoa. O doutor Frankenstein inventou a história do monstro criado no seu laboratório para justificar aquele halterofilista morando com ele.
Etc. etc.
Entrevista
Meu caro: recebi a revista com minha entrevista, que você não quis fazer por e-mail, como eu tinha sugerido, nem com um gravador, como seria prudente. Confiou na sua memória e nas suas anotações e o resultado aí está. Começando já na primeira pergunta, sobre o meu método de trabalho.
Reconheço que não falo com muita clareza, mas definitivamente não, repito não, disse que antes de começar a escrever traçava uns miúdos, o que pode dar a entender que me preparo para o trabalho atacando sexualmente crianças portuguesas. O que eu disse foi que amiúde faço traços no papel, esperando que venha a inspiração. Também não sei de onde você tirou que só escrevo descalço e ouvindo Mozart.
Em outra pergunta, sobre o começo da minha carreira e as leituras que me influenciaram, onde está “corcundas libertários” deveria ser “concursos literários”, e onde se lê “Frei Beto” deveria ser “Flaubert”. Não me lembro exatamente o que disse sobre o Machado de Assis, mas tenho certeza que não o chamei de “prótese motora”. Talvez fosse algo como “protomoderno”. Só saberíamos ao certo se você tivesse gravado!
Outra coisa. Sua pergunta sobre escritores brasileiros meus contemporâneos.
Se eu for processado — e no caso do Paulo Coelho certamente serei, depois do que você botou na minha boca sobre ele — farei o possível para que você seja responsabilizado criminalmente. Não entendo como a expressão “fenômeno cultural”, a respeito dos novos autores da era da informática, possa ter saído como “fedor monumental”. Vou ter que telefonar para vários escritores amigos meus para desmentir o que está na entrevista, antes que mandem me bater.
Você também ouviu errado o nome da minha mulher. Ela ainda não leu a entrevista, mas fatalmente me perguntará sobre essa Lidia que, segundo você, é minha companheira e musa há tantos anos. Vai querer saber onde eu a mantenho escondida.
Meus dados biográficos também saíram errado. Eu não disse que fui adotado com um ano e pouco. Disse que nasci sem cabelo e por isso fui apelidado de “Coco”. Na infância não gostava de andar pelado na rua. Gostava de jogar peladas na rua. E não consigo imaginar o que eu falei que levou você a escrever que na adolescência fui sequestrado por um casal de ciganos e levado para a Romênia. Eu deveria ter adivinhado que você entendera errado quando antes de escrever me perguntou se o certo era “Romênia” ou “Rumênia”. Também não sei como o senador Demóstenes Torres entrou na minha lista de atores favoritos.
Por fim: eu disse que minha cor preferida era o vermelho. Saiu “azul”. Foi o que mais doeu.
Perdedor, vencedor
O perdedor cumprimentou o vencedor. Apertaram-se as mãos por cima da rede. Depois foram para o vestiário, lado a lado. No vestiário, enquanto tiravam a roupa, o perdedor apontou para a raquete do outro e comentou, sorrindo:
— Também, com essa raquete…
Era uma raquete importada, último tipo. Muito melhor do que a do perdedor. O vencedor também sorriu, mas não disse nada. Começou a descalçar os tênis. O perdedor comentou, ainda sorrindo:
— Também, com esses tênis… O vencedor quieto. Também sorrindo. Os dois ficaram nus e entraram no chuveiro. O perdedor examinou o vencedor e comentou:
— Também, com esse físico…
O vencedor perdeu a paciência.
— Olha aqui — disse. — Você poderia ter um físico igual ao meu, se se cuidasse. Se perdesse essa barriga. Você tem dinheiro, senão não seria sócio deste clube. Pode comprar uma raquete igual à minha e tênis melhores do que os meus. Mas sabe de uma coisa? Não é equipamento que ganha jogo. É a pessoa. É a aplicação, a vontade de vencer, a atitude. E você não tem uma atitude de vencedor. Prefere atribuir sua derrota à minha raquete, aos meus tênis, ao meu físico, a tudo menos a você mesmo. Se parasse de admirar tudo que é meu e mudasse de atitude, você também poderia ser um vencedor, apesar dessa barriga.
O perdedor ficou em silêncio por alguns segundos, depois disse:
— Também, com essa linha de raciocínio…
Luis Fernando Verissimo nasceu em Porto Alegre em 26 de setembro de 1936. É escritor, humorista, cartunista, tradutor, roteirista de televisão, autor de teatro e romancista brasileiro. Já foi publicitário e revisor de jornal. Com mais de 80 títulos publicados, é um dos mais respeitados cronistas brasileiros, autor de best-sellers inesquecíveis, como Comédias da Vida Privada e Clube dos Anjos, da coleção Plenos Pecados. É ainda músico, tendo tocado saxofone em alguns conjuntos. Antes de se dedicar exclusivamente à literatura, trabalhou como revisor no jornal gaúcho Zero Hora, em fins de 1966, e atuou como tradutor, no Rio de Janeiro. É filho do também escritor Érico Verissimo.