“Memórias Inventadas: A Infância” é o primeiro livro em prosa de Manoel de Barros, lançado em 2003 e composto de pequenos textos poéticos. É a primeira parte de um compêndio composto por três livros. Em seus textos fica evidente a inclinação de Manoel de Barros para a poesia e a escrita. Assim, Manoel de Barros inicia esta publicação autobiográfica em 2003, seguindo da publicação dos outros dois livros: Memórias Inventadas: a Segunda Infância (2006) e Memórias Inventadas: a Terceira Infância (2008).
A obra se inicia com Manoel por Manoel: “Eu tenho um ermo enorme dentro do olho. Por motivo do ermo não fui um menino peralta. Agora tenho saudade do que não fui. Acho que o que faço agora é o que não pude fazer na infância. Faço outro tipo de peraltagem. Quando eu era criança eu deveria pular muro do vizinho para catar goiaba. Mas não havia vizinho. Em vez de peraltagem eu fazia solidão. Brincava de fingir que pedra era lagarto. Que lata era navio. Que sabugo era um serzinho mal resolvido e igual a um filhote de gafanhoto. Cresci brincando no chão, entre formigas. De uma infância livre e sem comparamentos. Eu tinha mais comunhão com as coisas do que comparação. Porque se a gente fala a partir de ser criança, a gente faz comunhão: de um orvalho e sua aranha, de uma tarde e suas garças, de um pássaro e sua árvore. Então eu trago das minhas raízes crianceiras a visão comungante e oblíqua das coisas. Eu sei dizer sem pudor que o escuro me ilumina. É um paradoxo que ajuda a poesia e que eu falo sem pudor. Eu tenho que essa visão oblíqua vem de eu ter sido criança em algum lugar perdido onde havia transfusão da natureza e comunhão com ela. Era o menino e os bichinhos. Era o menino e o sol. O menino e o rio. Era o menino e as árvores.”
Já em Fraseador, Manoel de Barros fala sobre sua descoberta sobre ser poeta: “Hoje eu completei oitenta e cinco anos. O poeta nasceu de treze. Naquela ocasião escrevi uma carta aos meus pais, que moravam na fazenda, contando que eu já decidira o que queria ser no meu futuro. Que eu não queria ser doutor. Nem doutor de curar nem doutor de fazer casa nem doutor de medir terras. Que eu queria era ser fraseador. Meu pai ficou meio vago depois de ler a carta. Minha mãe inclinou a cabeça. Eu queria ser fraseador e não doutor. Então, o meu irmão mais velho perguntou: Mas esse tal fraseador bota mantimento em casa? Eu não queria ser doutor, eu só queria ser fraseador. Meu irmão insistiu: Mas se fraseador não bota mantimento em casa, nós temos que botar uma enxada na mão desse menino pra ele deixar de variar. A mãe baixou a cabeça um pouco mais. O pai continuou meio vago. Mas não botou enxada.”
Nascido em Cuiabá/MT, Manoel Wenceslau Leite de Barros (1916-2014) foi um dos poetas brasileiros mais aclamados da contemporaneidade nos meios literários. Autor de versos nos quais elementos regionais se conjugavam a considerações existenciais e uma espécie de surrealismo pantaneiro, era considerado um poeta espontâneo, um tanto quanto primitivo e que extraía seus versos da realidade imediata a sua volta, principalmente da natureza.