Muitas Vozes

“Muitas Vozes”, obra de Ferreira Gullar foi publicada originalmente em 1999 e traz 54 poemas sobre os temas morte, vida, infância e sexo. O livro abriga, entre os seus principais títulos, o poema Thereza – um relato da morte da esposa e do filho (Marcos) do autor. A poesia de Muitas Vozes tem uma característica marcante sobre a “racionalidade e o imaginário”.

Após 12 anos sem publicar, Ferreira Gullar lança “Muitas Vozes”, uma obra reflexiva, onde temas como a vida, a morte e as memórias de infância estão presentes de forma mais amena e madura.

A seguir, alguns dos poemas presentes no livro:

Filhos
Daqui escutei
quando eles
chegaram rindo
e correndo
entraram
na sala
e logo
invadiram também
o escritório
(onde eu trabalhava)
num alvoroço
e rindo e correndo
se foram
com sua alegria
se foram
Só então
me perguntei
por que
não lhes dera
maior
atenção
se há tantos
e tantos
anos
não os via
crianças
já que
agora
estão os três
com mais
de trinta anos.

Visita
no dia de
finados ele foi
ao cemitério
porque era o único
lugar do mundo onde
podia estar
perto do filho mas
diante daquele
bloco negro
de pedra
impenetrável
entendeu
que nunca mais
poderia alcançá-lo
Então
apanhou do chão um
pedaço amarrotado
de papel escreveu
eu te amo filho
pôs em cima do
mármore sob uma
flor
e saiu
soluçando

Internação
Ele entrara em surto
e o pai o levava de
carro para
a clínica
ali no Humaitá numa
tarde atravessada
de brisas e
falou
(depois de meses
trancado no
fundo escuro de
sua alma)
pai,
o vento no rosto
é sonho, sabia?

Fim
Como não havia ninguém
na casa aquela
terça-feira tudo
é suposição: teria
tomado seu costumeiro
banho
de imersão por volta
de meio-dia e trinta e
de cabelos ainda
úmidos
deitou-se na cama para
descansar não
para morrer
queria
dormir um pouco
apenas isso e
assim não lhe
terá passado pela
mente – até
aquele último segundo
antes de
se apagar no
silêncio – que
jamais voltaria
ao ruidoso mundo
da vida

Redundâncias
Ter medo da morte
é coisa dos vivos
o morto está livre
de tudo o que é vida
Ter apego ao mundo
é coisa dos vivos
para o morto não há
(não houve)
raios rios risos
E ninguém vive a morte
quer morto quer vivo
mera noção que existe
só enquanto existo

Além destes, outros poemas do autor que compõem a obra:

Sob a espada, Queda de Allende, Definição da moça, Nasce o poeta, Ao rés da fala, Lição de um gato siames, Poemas recentes, Nova concepção de morte, Manhã de novembro, Coito, Infinito silêncio, Morrer no Rio de Janeiro, entre outros.

Ferreira Gullar, pseudônimo de José Ribamar Ferreira, nasceu em São Luís em 10 de setembro de 1930 e foi um escritor, poeta, crítico de arte, biógrafo, tradutor, memorialista e ensaísta brasileiro e um dos fundadores do neoconcretismo. Foi o postulante da cadeira 37 da Academia Brasileira de Letras, na vaga deixada por Ivan Junqueira, da qual tomou posse em 5 de dezembro de 2014. Faleceu no Rio de Janeiro, em 4 de dezembro de 2016 em decorrência de vários problemas respiratórios que culminaram lamentavelmente em uma pneumonia. O velório foi realizado inicialmente na Biblioteca Nacional, já que este era um desejo do autor. Dali, o corpo foi levado em um cortejo fúnebre até a Academia Brasileira de Letras, também no Rio de Janeiro.