O amanhã não está à venda

Com bom um humor e ironia, um dos nossos maiores pensadores indígenas, Ailton Krenak, lançou, em abril deste ano de 2020, pela Companhia das Letras, o livro “O amanhã não está à venda”, contendo suas reflexões e pensamentos sobre a pandemia que vivemos atualmente e que em parte, parou o mundo, ameaçando nossa espécie. Neste contexto de pandemia da Covid-19, o próprio planeta obriga a todos nós a repensarmos e reconsiderarmos o nosso estilo de vida.

Em um dos pontos levantados por Krenak, se refere ao confinamento, uma vez que antes eram os povos indígenas que corriam risco de ser extintos, e que hoje, este perigo ameaça a todos nós. Fica evidente ainda que a mãe Terra acaba encontrando uma forma de nos calar, como uma espécie de educação de moral, goela abaixo, na marra. Mesmo assim, não se trata de algo como vingança, mas sim de autodefesa. A questão é que a ameaça de precisarmos ser socorridos [e mantidos] por máquinas respiratórias ironicamente nos faz valorizar este equipamento biológico que nos permite respirar livremente, a própria natureza.

O autor expõe que certamente aguardamos, desejosos, que este estado de privação e pandemia acabe de uma vez por todas, para que possamos voltar à vida normal. Entretanto, o autor deixa claro que torce para que isso não aconteça, afinal, se todos nós voltarmos à normalidade, é porque de nada valeu a perda de centenas de milhares de pessoas em todo o mundo.

Krenak analisa e coloca em cheque esta ideia de “voltar à normalidade” e com isso destaca que depois desta difícil [e terrível] experiência que o mundo tem passado, é necessário que todos trabalhemos a fim de que hajam profundas [e significativas] mudanças na forma como vivemos. Assim, o autor explica que:

“Tem muita gente que suspendeu projetos e atividades. As pessoas acham que basta mudar o calendário. Quem está apenas adiando compromisso, como se tudo fosse voltar ao normal, está vivendo no passado […]. Temos de parar de ser convencidos. Não sabemos se estaremos vivos amanhã. Temos de parar de vender o amanhã”.

O autor lembra que

“Não fazemos falta na biodiversidade. Pelo contrário. Desde pequenos, aprendemos que há listas de espécies em extinção. Enquanto essas listas aumentam, os humanos proliferam, destruindo florestas, rios e animais. Somos piores que a Covid-19. Esse pacote chamado de humanidade vai sendo descolado de maneira absoluta desse organismo que é a Terra”.

Um trecho que merece destaque:

“É terrível o que está acontecendo, mas a sociedade precisa entender que não somos o sal da terra. Temos que abandonar o antropocentrismo; há muita vida além da gente, não fazemos falta na biodiversidade. Pelo contrário. Desde pequenos, aprendemos que há listas de espécies em extinção. Enquanto essas listas aumentam, os humanos proliferam, destruindo florestas, rios e animais. Somos piores que a Covid-19. Esse pacote chamado de humanidade vai sendo descolado de maneira absoluta desse organismo que é a Terra, vivendo numa abstração civilizatória que suprime a diversidade, nega a pluralidade das formas de vida, de existência e de hábitos”.

Ailton Krenak literalmente põe o dedo na ferida ao destacar o seguinte:

“Michel Foucault tem uma obra fantástica, Vigiar e punir, na qual afirma que essa sociedade de mercado em que vivemos só considera o ser humano útil quando está produzindo. Com o avanço do capitalismo, foram criados os instrumentos de deixar viver e de fazer morrer: quando o indivíduo para de produzir, passa a ser uma despesa. Ou você produz as condições para se manter vivo ou produz as condições para morrer. O que conhecemos como Previdência, que existe em todos os países com economia de mercado, tem um custo. Os governos estão achando que, se morressem todas as pessoas que representam gastos, seria ótimo. Isso significa dizer: pode deixar morrer os que integram os grupos de risco. Não é ato falho de quem fala; a pessoa não é doida, é lúcida, sabe o que está falando”.

O livro está disponível gratuitamente na Amazon neste link.

Ailton Krenak nasceu em 1953, na região do vale do rio Doce, território do povo Krenak, um lugar cuja ecologia se encontra profundamente afetada pela atividade de extração de minérios. Ativista do movimento socioambiental e de defesa dos direitos indígenas, Krenak é considerado uma das maiores lideranças do movimento indígena brasileiro, possuindo reconhecimento internacional, tendo já publicado inúmeras obras e um vasto trabalho educativo e ambientalista, como jornalista, e através de programas de vídeo e televisivos. É coautor da proposta da Unesco que criou a Reserva da Biosfera da Serra do Espinhaço em 2005 e é membro de seu comitê gestor. É comendador da Ordem do Mérito Cultural da Presidência da República e lhe foi atribuído em 2016 o titulo de doutor honoris causa pela UFJF, em Minas Gerais.