O Guardador de Águas

Brincar com as palavras, com frases e fonemas, com estrutura e linhas, não é tarefa tão fácil assim. De todo modo, Manoel de Barros é um dos que sabe fazer isso com maestria. Em “O Guardador de Águas”, por meio de sua metalinguagem, o autor mistura substantivos com adjetivos, dando vida ao que antes não havia. Objetos inanimados ganham forma e tomam conta do espaço.

A primeira edição de O Guardador de Águas é de 1998, sendo que a edição que tive acesso data de 2017, publicada pela Alfaguara e que traz as marcas registradas do autor: sonoridade, combinações ousadas e neologismos.

A apresentação da obra explicita o que Manoel de Barros desejava:

Em O Guardador de Águas, Manoel de Barros duplica-se e cede a palavra a outro personagem, o Bernardo da Mata. Bernardo era empregado de sua fazenda e foi seu amigo de vida inteira. Em vários poemas, é Bernardo quem apresenta a fala primal da natureza que tanto caracteriza o poeta. Mas a poesia de Manoel não é ingênua, ela não ignora a teia estabelecida pela cultura. Ela desafia a lógica convencional, exercitando-se na metalinguagem. Este livro é feito de frases em mutação, que juntam as águas, o mato e os pequenos seres da mata. Mas não se deixem enganar: Manoel é muito maior que um “poeta pantaneiro”, expressão tantas vezes utilizada para defini-lo. É ele quem diz: “Não tenho em mente trazer contribuição para o acervo folclórico do Pantanal. Meu negócio é descascar as palavras, se possível, até a mais lírica semente delas”.

A seguir, três poemas dos tantos que compõem a obra:

I

Não tenho bens de acontecimentos.
O que não sei fazer desconto nas palavras.
Entesouro frases. Por exemplo:
— Imagens são palavras que nos faltaram.
— Poesia é a ocupação da palavra pela Imagem.
— Poesia é a ocupação da Imagem pelo Ser.
Ai frases de pensar!
Pensar é uma pedreira. Estou sendo.
Me acho em petição de lata (frase encontrada no lixo).
Concluindo: há pessoas que se compõem de atos, ruídos,
retratos.
Outras de palavras.
Poetas e tontos se compõem com palavras.

VII

O sentido normal das palavras não faz bem ao poema.
Há que se dar um gosto incasto aos termos.
Haver com eles um relacionamento voluptuoso.
Talvez corrompê-los até a quimera.
Escurecer as relações entre os termos em vez de aclará-los.
Não existir mais rei nem regências.
Uma certa liberdade com a luxúria convém.

XII

Que a palavra parede não seja símbolo
de obstáculos à liberdade
nem de desejos reprimidos
nem de proibições na infância
etc. (essas coisas que acham os
reveladores de arcanos mentais)
Não.
Parede que me seduz é de tijolo, adobe
preposto ao abdômen de uma casa.
Eu tenho um gosto rasteiro de
ir por reentrâncias
baixar em rachaduras de paredes
por frinchas, por gretas — com lascívia de hera.
Sobre o tijolo ser um lábio cego.
Tal um verme que iluminasse.

Manoel de Barros nasceu em Cuiabá, Mato Grosso, em dezembro de 1916, e passou a infância no Mato Grosso do Sul, primeiro numa fazenda próxima a Corumbá, depois num internato em Campo Grande. Aos doze anos, foi estudar no Rio de Janeiro — cidade onde viveu por mais de trinta anos, antes de voltar ao Mato Grosso do Sul. Filho de fazendeiros, aos 13 anos começou a esboçar seus primeiros poemas. O livro de estreia, Poemas concebidos sem pecado, foi publicado em 1937. No início da década de 50, Manoel de Barros voltou para o Pantanal de sua infância e assumiu definitivamente a fazenda que fora de seus pais, onde conciliou as atividades de fazendeiro e poeta. Levantava-se às cinco da manhã e ia para o escritório trabalhar por quatro horas diárias, escrevendo e lendo para “desenvolver o imaginário”. Perfeccionista, Manoel de Barros não hesitava em reescrever dezenas de vezes um poema, até que ficasse satisfeito com o resultado. Era no Pantanal, no meio de um dos ecossistemas mais ricos do planeta e caminhando pelas ruas das pequenas cidades, que encontrava a inspiração para sua obra, na fala do povo, no vocabulário do homem pantaneiro. O resultado é uma linguagem própria que ele chamava de “idioleto manoelês archaico”. Recebeu diversos prêmios, entre eles: o Prêmio Nacional de Poesias, em 1966, com Gramática expositiva do chão, o Prêmio Jabuti, em 1987, com O guardador de águas, o Prêmio Biblioteca Nacional em 1996, e o Prêmio Nestlé de Literatura em 1997, por Livro sobre o nada, e o Prêmio Nacional de Literatura do Ministério da Cultura, em 1998, pelo conjunto da obra. Faleceu em novembro de 2014, aos 97 anos. Manoel de Barros foi tema do documentário Só dez por cento é mentira, do diretor Pedro Cezar, exibido em 2010.