Tive o prazer de ler “Os Miseráveis” de Victor Hugo que já estava na minha lista de futuras leituras a algum tempo. A edição que tive acesso teve tradução e adaptação de Walcyr Carrasco, mas vale ressaltar que, apesar desta edição ser bastante recente (relançada em 2012), a obra foi publicada pela primeira vez na França, em 1862 e logo se transformou em um grande sucesso. Traduzida em diversas línguas, “Os Miseráveis” percorreu o mundo. É uma história com forte cunho social, que traz em seu enredo, um ex-prisioneiro perseguido sem tréguas por um inspetor fanático. Com vários elementos de trama policial, além de uma sucessão de acontecimentos e as difíceis circunstâncias vividas pelos personagens, acabam por levantar diversas questões sobre lei, justiça e solidariedade.
Creio que uma das importantes mensagens de Os Miseráveis é sobre como uma pessoa pode se transformar através da ação de outra. Neste caso, a mudança ocorre quando um injustiçado recebe compreensão e generosidade vindos de outra pessoa. A história traz fugas, trapaças e armadilhas, e claro, como não poderia faltar, uma bela história de amor. O leitor certamente identificará na obra inúmeros aspectos ligados a interesses e atitudes mesquinhas, mas também gestos de desprendimento e bondade.
Vale ressaltar que a trama tem como pano de fundo, a Revolução Francesa e seus ideais de Igualdade, Liberdade e Fraternidade. Exatamente neste ambiente, somos convidados a refletir sobre problemas de cunho social e trabalhista que naturalmente acabam por se tornar conflitos.
Um trecho bastante esclarecedor, situa o leitor no período histórico em que se passa a Os Miseráveis, explicando alguns aspectos da Revolução Francesa:
Um pouco antes da época em que se passa a história, a França vivia sob o governo dos reis (monarcas), que centralizavam o poder e determinavam o destino de seus súditos. Essa sociedade estava dividida em três classes, sendo muito difícil alguém mudar sua condição social. A primeira era composta pela Igreja. A segunda, pela aristocracia, também chamada de nobreza, que apesar de rica pagava bem menos impostos e vivia dos pagamentos recebidos dos camponeses e do governo. A terceira classe era constituída pelo maior número de habitantes. Dela faziam parte a burguesia (representada por banqueiros, industriais, advogados, médicos, comerciantes) e também a camada mais pobre da população. A burguesia, apesar de possuir dinheiro, não tinha poder de decisão na vida política e estava revoltada com os privilégios da Igreja e dos aristocratas. Os mais humildes, que viviam na miséria, eram obrigados a pagar impostos. Os gastos do rei e de sua corte superavam em muito o dinheiro recebido com tais impostos. O comércio não ia bem e havia ainda as despesas com as guerras das quais a França participava. Tudo isso resultou na Revolução Francesa, também chamada Revolução Burguesa, que teve início em 1789 e se inspirou num conjunto de idéias contrárias ao poder dos reis e ao domínio religioso, pregando a liberdade, a igualdade e a fraternidade entre todas as pessoas.
Em outro trecho é caracterizado Napoleão Bonaparte:
Napoleão Bonaparte era um jovem militar que teve grande destaque durante a Revolução Francesa. Em 1799, com o apoio da burguesia, Napoleão tomou o poder. Um de seus objetivos era conter os ânimos das camadas populares, garantindo as conquistas burguesas, além de expandir o território francês. O período que se seguiu ao fim da Revolução foi marcado por muitas conquistas militares e pela expansão das idéias revolucionárias francesas ao restante do mundo. Em 1804, Napoleão foi coroado imperador. Sob seu comando, em 1812, a França dominava quase toda a Europa ocidental. Em 1814, porém, um exército formado por Inglaterra, Áustria, Rússia e Prússia invadiu Paris, a capital francesa. Napoleão foi exilado e o trono da França entregue a Luís XVIII. Em março de 1815, Napoleão retornou à vida política francesa, prometendo mudanças. Acabou conseguindo o apoio da população e voltou ao governo. Mas foi formada uma nova coligação internacional contra a França e Napoleão foi derrotado em junho de 1815, na Batalha de Waterloo, na Bélgica.
Após pesquisar, identifiquei que algumas edições da obram podem trazer (ou não) características únicas e portanto, apesar da história base ser a mesma, certos trechos podem estar em uma e não estar em outra. Assim, apesar de não fazerem parte desta edição que tive acesso, outras edições de “Os Miseráveis” trazem outras tantas frases e trechos interessantíssimos que vale a pena serem mencionados:
O belo é tão útil quanto o útil. Talvez até mais.
Certos pensamentos são como orações, há momentos em que, seja qual for a posição do corpo, a alma está, sempre, de joelhos.
Monstros se incomodam facilmente.
A gargalhada é o sol que varre o inverno do rosto humano.
Amar ou ter amado. Isso é o suficiente. Não peça nada mais. Não há outra pérola a ser encontrada nas dobras escuras da vida. O amor é uma consumação.
Vamos compreender melhor o que diz respeito à equidade, pois se a liberdade é o cume, a equidade é a base; (…) civilmente, ela é todas as aptidões tendo iguais oportunidades; politicamente, todos os votos tendo o mesmo peso; religiosamente, todas as consciências tendo direitos iguais.
Viajar é um constante nascer e morrer.
A maior felicidade da vida é termos a convicção de que somos amados.
Com os olhos fechados é a melhor forma de olhar para uma alma.
Pobres daqueles que só amam corpos, formas e aparências. A morte levará tudo deles. Procure amar almas, você as encontrará de novo.
Destrua o buraco Ignorância e você destruirá a toupeira Crime. O único perigo social é a escuridão. (…) Humanidade é similaridade. Todos os homens são a mesma argila. Não há diferença, aqui na Terra ao menos, por predestinação. A mesma escuridão antes, a mesma carne durante, as mesmas cinzas depois. Mas a Ignorância, mesclada com a composição humana, escurece essa percepção. É assim que a Ignorância possui o coração do homem e, daí, surge o Mal.
Diante daqueles cujo olhar não tem luz, reflita e estremeça. A ordem social tem seus mineiros sombrios. Há um ponto em que minar torna-se um sepultamento e toda a luz se vai.
Um cético cedendo a um crente é algo tão simples quanto a lei das cores complementares. O que nos falta nos atrai. Ninguém ama a luz como um homem cego.
O deleite que inspiramos nos outros tem esta encantadora peculiaridade: longe de ser diminuído como qualquer outro reflexo, ele retorna a nós mais radiante do que nunca.
É estranho como uma consciência clara resulta em uma geral serenidade.
Sobre métodos para se rezar, todos são bons, desde que sejam sinceros. Feche este livro e você está no infinito.
Este é, na verdade, o mais desastroso dos sintomas sociais: todos os crimes do homem começam com a vadiagem na infância.
Certamente nós falamos conosco mesmos; não há um ser pensante que não tenha experimentado isso. Alguém até poderia dizer que a palavra é um mistério ainda mais magnífico quando, dentro de um homem, ela viaja de seu pensamento até a consciência, e retorna da consciência ao pensamento.
A lei sagrada de Jesus Cristo governa nossa civilização, mas não a penetra. Eles dizem que a escravidão desapareceu. Isso é incorreto. Ela ainda existe, mas agora pesa especialmente sobre a mulher e se chama prostituição.
Em cidades pequenas, uma mulher desafortunada parece estar completamente nua diante do sarcasmo e da curiosidade de todos. Os maliciosos têm uma obscura felicidade (…) E algumas pessoas são maldosas pela simples necessidade de falar.
Ensine aos ignorantes tanto quanto puder; a sociedade é culpada por não prover educação universal gratuita, e deve responder pela escuridão que produz. Se uma alma é deixada na escuridão, pecados serão cometidos. E a responsabilidade não é de quem comete o pecado, mas daqueles que causam a escuridão.
Ser perverso não garante prosperidade.
Por se tratar de uma adaptação, a obra recebe nuances de Walcyr Carrasco, conhecido por seu trabalho como dramaturgo, escritor e jornalista. Deste modo, a obra acaba por ser ajustada para novos tipos de leitores e ao mesmo tempo se torna bastante condensada se comparada à versão original. A obra é, na opinião de 10 em cada 10 leitores, um dos maiores best-sellers da história da literatura mundial.
Ao final, Walcyr Carrasco explica porque gosta tanto desta obra:
O romance Os Miseráveis sempre me fascinou. Escrito no século XIX fala da injustiça social. Mas resiste até hoje! Quantas pessoas como o ex-condenado Jean Valjean, o menino de rua Gavroche, e Cosette, a órfã, não estão ao nosso lado? Se lermos os jornais, encontraremos muitas histórias parecidas com as das personagens. Poucos livros conseguem dar um panorama tão arrebatador. Mostra a época histórica. Emociona. E faz pensar sobre temas importantes. Esta é uma adaptação, com a história completa. Espero que um dia todos vocês possam se debruçar sobre o romance original e conviver com a profunda meditação que o autor faz sobre a vida e a condição humana. Muitas adaptações para cinema foram feitas a partir do romance. Nos últimos anos, um dos musicais de maior sucesso nos palcos de todo o mundo, Os Miseráveis, também baseia-se no livro. Fico especialmente emocionado com a personagem principal, Jean Valjean. No início um homem rancoroso, ele é transformado por um gesto de amor ao próximo. A generosidade ilumina seu coração. Redescobre os valores éticos e cria uma nova consciência. Sua vida passa, então, a ser reflexo dessa consciência. A capacidade de alguém mudar através do amor é tocante. Fica a mensagem. Todo mundo pode tornar o mundo melhor. Basta querer. Amar o próximo, eis a questão.
Victor Hugo nasceu em 26 de fevereiro de 1802 e faleceu em 1885, na França. É considerado o principal nome do romantismo francês, e escreveu muitos poemas e romances lembrados até hoje. Entre eles, O Corcunda de Notre Dame e Os Trabalhadores do Mar. A obra de Victor Hugo supera seu tempo. Retrata com profundidade a condição humana e todos os níveis da sociedade, dos nobres aos excluídos. Suas personagens possuem vida própria, pois são capazes de denunciar a miséria, a falta de justiça e a necessidade de construir um mundo melhor.