Quintana é conhecido por trazer para seus poemas, o cotidiano. Seu olhar para o comum e o natural dá um novo significado a elementos que talvez nem nos dávamos conta. Na obra “Quintana de Bolso” os poemas, aforismos e pensamentos do autor investigam os sentimentos cotidianos das pessoas e dele mesmo, algo que, como já dito, sempre foi uma marca do autor. Entendendo-o como um nato observador, Quintana se declarava “filho de Freud com a rainha Vitória”, e o bom humor costumeiro Quintana palpitava, orava e desconstruía os sentimentos do amor, o medo da velhice e as delícias em torno da infância. Quintana aprendeu a simplificar o mundo e a tolerar as angústias diárias com simplicidade, inteligência e humor.
A sinopse oficial da edição da LP&M Pocket, lançada em 1997 e que tive o prazer de ler, destaca:
Neste volume estão reunidos cerca de 200 poemas entre os mais marcantes produzidos pelo poeta. Mario Quintana foi um dos maiores poetas brasileiros da segunda metade do século, ocupando a restrita galeria de grandes poetas que obtiveram enorme reconhecimento popular, como Vinicius de Morais, Carlos Drummond de Andrade, Cecília Meireles e Manuel Bandeira. Escreveu algumas obras-primas da poesia brasileira como os livros A rua dos cataventos (1940), O sapato florido (1947), Espelho mágico (1948), O aprendiz de feiticeiro (1950), entre outros.
A seleção cuidadosa de Sergio Faraco revela ao leitor uma parte significativa da obra desse grande poeta. Transitando, habilmente, por temas do cotidiano e sugerindo uma reflexão sobre as questões mais interessantes da vida – como o passado e a morte –, Quintana consegue se expressar de maneira simples e comoventemente terna, num lirismo ao mesmo tempo encantador, realista, crítico.
Alguns belos poemas quem compõem a obra:
CANÇÃO DA PRIMAVERA – Para Érico Veríssimo
Primavera cruza o rio
Cruza o sonho que tu sonhas.
Na cidade adormecida
Primavera vem chegando.Catavento enloqueceu,
Ficou girando, girando.
Em torno do catavento
Dancemos todos em bando.Dancemos todos, dancemos,
Amadas, Mortos, Amigos,
Dancemos todos até
Não mais saber-se o motivo…Até que as paineiras tenham
Por sobre os muros florido!
O AUTO-RETRATO
No retrato que me faço
– traço a traço –
às vezes me pinto nuvem,
às vezes me pinto árvore…às vezes me pinto coisas
de que nem há mais lembrança…
ou coisas que não existem
mas que um dia existirão…e, desta lida, em que busco
– pouco a pouco –
minha eterna semelhança,no final, que restará?
Um desenho de criança…
Corrigido por um louco!
PEQUENO POEMA DIDÁTICO
O tempo é indivisível. Dize,
Qual o sentido do calendário?
Tombam as folhas e fica a árvore,
Contra o vento incerto e vário.A vida é indivisível. Mesmo
A que se julga mais dispersa
E pertence a um eterno diálogo
A mais inconseqüente conversa.Todos os poemas são um mesmo poema,
Todos os porres são o mesmo porre,
Não é de uma vez que se morre…
Todas as horas são horas extremas!
O MORITURO
Por que é que assim, com suas caras imóveis e simiescas,
os vivos nos devassam num cínico impudor?
Por que nos olham assim – como se fôssemos cousas –
quando os nossos traços vão repousando, enfim,
na tranqüila dignidade da morte?
Por que é que eles, com a sua obscena curiosidade,
não respeitam o até mais íntimo da nossa vida
– ato que deveria ser testemunhado apenas pelos Anjos?
Ah, que Deus me guarde na hora da minha morte, amén,
que Deus me guarde da humilhação deste espetáculo
e me livre de todos, de todos eles:
não quero os seus olhos pousando como moscas
[na minha cara.
Quero morrer na selva de algum país distante…
Quero morrer sozinho como um bicho!
O VELHO DO ESPELHO
Por acaso, surpreendo-me no espelho: quem é esse
Que me olha e é tão mais velho do que eu?
Porém, seu rosto… é cada vez menos estranho…
Meu Deus, Meu Deus…Parece
Meu velho pai – que já morreu!
Como pude ficarmos assim?
Nosso olhar – duro – interroga:
“O que fizeste de mim?!”
Eu, Pai?! Tu é que me invadiste,
Lentamente, ruga a ruga… Que importa? Eu sou, ainda,
Aquele mesmo menino teimoso de sempre
E os teus planos enfim lá se foram por terra.
Mas sei que vi, um dia – a longa, a inútil guerra! –
Vi sorrir, nesses cansados olhos, um orgulho triste…
O MORTO
Eu estava dormindo e me acordaram
E me encontrei, assim, num mundo estranho e louco…
E quando eu começava a compreendê-lo
Um pouco,
Já eram horas de dormir de novo.
Mário de Miranda Quintana nasceu em Alegrete/RS em 30 de julho de 1906. Em 1953, Quintana trabalhou no jornal Correio do Povo, como colunista da página de cultura, que saía aos sábados, e em 1977 saiu do jornal. Em 1940, ele lançou o seu primeiro livro de várias poesias, A Rua dos Cataventos, iniciando a sua carreira de poeta, escritor e autor infantil. Ao longo de sua vida, recebeu diversos prêmios e honrarias, entre elas o Prêmio Fernando Chinaglia em 1966, a medalha Negrinho do Pastoreio em 1976, Prêmio Machado de Assis em 1980 e Prêmio Jabuti em 1981. O autor e poeta não se casou nem teve filhos. Solitário, viveu grande parte da vida em hotéis: de 1968 a 1980, residiu no Hotel Majestic, no centro histórico de Porto Alegre. Certa vez, ele disse a uma amiga que achou pequeno o quarto que ele residia: “Eu moro em mim mesmo. Não faz mal que o quarto seja pequeno. É bom, assim tenho menos lugares para perder as minhas coisas”. Morreu em Porto Alegre/RS em 5 de maio de 1994.